The Project Gutenberg eBook of Da terra à lua, viagem directa em 97 horas e 20 minutos This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Da terra à lua, viagem directa em 97 horas e 20 minutos Author: Jules Verne Translator: Henrique de Macedo Release date: March 16, 2009 [eBook #28341] Most recently updated: January 4, 2021 Language: Portuguese Credits: E-text prepared by Alberto Manuel Brandão Simões, Rita Farinha, and the Project Gutenberg Online Distributed Proofreading Team *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK DA TERRA À LUA, VIAGEM DIRECTA EM 97 HORAS E 20 MINUTOS *** E-text prepared by Alberto Manuel Brandão Simões, Rita Farinha, and the Project Gutenberg Online Distributed Proofreading Team (https://www.pgdp.net) Note: Project Gutenberg also has an HTML version of this file which includes the original illustrations. See 28341-h.htm or 28341-h.zip: (https://www.gutenberg.org/dirs/2/8/3/4/28341/28341-h/28341-h.htm) or (https://www.gutenberg.org/dirs/2/8/3/4/28341/28341-h.zip) Nota do traductor: Devido à existência de erros tipográficos neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Mar. 2009) OBRA PREMIADA PELA ACADEMIA DAS SCIENCIAS DE FRANÇA DA TERRA Á LUA VIAGEM DIRECTA EM 97 HORAS E 20 MINUTOS Lisboa--Imprensa Nacional--1874 VIAGENS MARAVILHOSAS JULIO VERNE DA TERRA Á LUA VIAGEM DIRECTA EM 97 HORAS E 20 MINUTOS TRADUCÇÃO DE HENRIQUE DE MACEDO Lente de mathematica na escola polytechnica e astronomo no observatorio de marinha BIBLIOTHECA ILLUSTRADA DE INSTRUCÇÃO E RECREIO EMPREZA HORAS ROMANTICAS Rua dos Calafates, 102, 1.^o andar LISBOA Traducção auctorisada e reservada --JULIO VERNE-- [Figura] DA TERRA Á LUA CAPITULO I O GUN-CLUB Durante a guerra federal dos Estados Unidos fundou-se, na cidade de Baltimore, mesmo no centro do Maryland, um novo club de grande influencia. É notoria a energia com que se desenvolveram os instinctos militares por entre aquella população de armadores, de negociantes e de machinistas. Insignificantes mercadores saltaram por cima do balcão e acharam-se de improviso transformados em capitães, em coroneis e até em generaes, sem terem passado pelas escolas de applicação de West-Point[1]; em curto espaço foram na _arte da guerra_ dignos rivaes dos collegas do velho continente, e, á imitação d'estes, alcançaram, á força de prodigalisar balas, milhões e homens, brilhantes victorias. Mas em que os americanos excederam singularmente os europeus foi na sciencia da balistica; e não porque as armas americanas attingissem mais elevado grau de perfeição, senão porque apresentaram dimensões desusadas, e tiveram por consequencia alcances correspondentes e até então desconhecidos. Pelo que diz respeito a tiros rasantes, immergentes ou em cheio, a fogos de escarpa de enfiada ou de revez, já não têem, inglezes, francezes nem prussianos cousa alguma que aprender; mas os canhões, obuzes e morteiros europeus são apenas pistolas de algibeira, comparados com os formidaveis machinismos bellicos da artilheria americana. Não deve causar espanto o que deixâmos dito. Os yankees, que são os primeiros mechanicos do mundo, nascem engenheiros como qualquer italiano nasce musico, ou qualquer allemão, philosopho transcendental; portanto nada mais natural do que ve-los demonstrar na applicação á sciencia da balistica o audacioso engenho de que são dotados. Assim se explicam esses gigantescos canhões, que, muito menos uteis que as machinas de coser, são pelo menos tão admiraveis e de certo ainda mais admirados. Os maravilhosos inventos, n'este genero, de Parrott, de Dahlgreen e de Rodman são bem conhecidos; os Armstrong, os Palliser, os Treuille de Beaulieu não tiveram mais remedio do que curvar-se vencidos perante os seus rivaes de alem mar. Tudo isto deu causa a que, durante a terrivel lucta entre os partidarios do norte e os do sul, occupassem os artilheiros em toda a parte o primeiro logar; celebravam-lhes os jornaes da União os inventos com enthusiasmo, e sem exceptuar o mais insignificante dos logistas ou o mais ingenuo dos booby[2], todos quebravam a cabeça dia e noite a calcular trajectorias impossiveis. Ora quando a uma cabeça de americano acode uma idéa, busca logo o seu possuidor segundo americano que a acceite: chegam a tres, elegem logo presidente e dois secretarios; quatro, nomeiam archivista e funcciona a _mesa_; cinco, convocam-se em assembléa geral, e está constituido um club. Assim succedeu em Baltimore. O primeiro que inventou um novo canhão associou-se com o primeiro que o fundiu e com o primeiro que o perfurou. Tal foi o primitivo nucleo do Gun-Club[3], que um mez depois da sua inauguração contava mil oitocentos e trinta e tres socios effectivos, e trinta mil quinhentos e setenta e cinco socios correspondentes. A todos que queriam fazer parte da associação era imposta uma condição _sine qua non_, a de ter inventado, ou pelo menos aperfeiçoado, um canhão; na falta de canhão uma arma de fogo qualquer. Mas, para dizer a verdade inteira, bem pouca consideração gosavam os inventores de revolvers de quinze tiros, de carabinas girantes ou de sabres-pistolas. Em tudo lhe levavam os artilheiros primazia. A estima de que é credor qualquer socio, disse um dia um dos mais entendidos oradores do Gun-Club, é proporcional «ás massas» do canhão que inventou, e está «na rasão directa do quadrado das distancias a que alcançam os respectivos projectis!» [Figura: Os artilheiros de Gun-Club (pag. 12).] Com pequena differença, era a lei de Newton ácerca da gravitação universal transportada ás cousas do mundo moral. Fundado o Gun-Club, facil é imaginar o que produziria n'este genero o engenho inventivo dos americanos. Os machinismos de guerra assumiram proporções colossaes, e os projectis foram alem dos limites permittidos partir em dois bocados inoffensivos transeuntes. Todos estes inventos deixaram a perder de vista os timidos instrumentos da artilheria europea. Forme-se juizo pelos seguintes algarismos. Outr'ora «bom tempo era esse» uma bala de trinta e seis, á distancia de trezentos pés, varava trinta e seis cavallos apanhados de flanco ou sessenta e oito homens. Era a infancia da arte. Desde essa epocha progrediram muito os projectis. O canhão Rodman, que, com uma bala de meia tonelada[4] alcançava a sete milhas[5], facilmente poria fóra de combate cento e cincoenta cavallos e trezentos homens. Chegou-se até a discutir no Gun-Club a conveniencia e possibilidade de submetter a uma experiencia solemne as qualidades d'este canhão monstruoso. Porém se os cavallos consentiram em tentar a experiencia, infelizmente a respeito de homens nem um só se offereceu. Em todo o caso, o que é fóra de duvida é que o effeito d'estas armas era extremamente mortifero e que por cada tiro caíam os combatentes como espigas sob a foice do ceifador. Que valiam, comparados com taes projectis, aquella famosa bala que, em Contras, em 1785, poz fóra de combate vinte e cinco homens, ou aquella outra que, em Zorndoff em 1758, matou quarenta infantes, e o canhão austriaco de Kesselsdorf, em 1742, que por cada tiro derrubava setenta inimigos? Que importancia tinham esses surprehendentes fogos de Iena ou de Austerlitz, que decidiram da sorte de uma batalha? Durante a guerra federal na America viram-se cousas muito mais de pasmar! No combate de Gettysburg, um projectil conico lançado por um canhão raiado feriu cento e setenta e tres confederados, e, na passagem do Potomac, uma bala Rodman mandou para um mundo evidentemente melhor duzentos e quinze partidarios do Sul. Não é menos digno de menção um formidavel morteiro inventado por J.-T. Maston, socio distincto e secretario perpetuo do Gun-Club, cujos effeitos foram sem comparação mais mortiferos, visto como, do primeiro tiro de experiencia, matou trezentas e trinta e sete pessoas; verdade é que o morteiro rebentou! Que havemos de accrescentar a estes numeros já de per si tão eloquentes? Nada. Assim, por certo, será admittido sem contradicção o seguinte calculo apresentado pelo _estatistico_ Pitcairn, que dividindo o numero das victimas de tiro de bala pelo dos socios do Gun-Club, demonstrou que cada um d'estes tinha morto em «media», dois mil trezentos e setenta e cinco homens e uma fracção. Para quem reflectir em tal algarismo, fica evidente que a unica preoccupação d'aquella sociedade scientifica era a destruição da humanidade, com um fim philanthropico, o aperfeiçoamento das armas de guerra, consideradas como instrumentos de civilisação. Era uma reunião de anjos exterminadores, e a fóra isto, as melhores pessoas do mundo. Cumpre-nos accrescentar que estes yankees corajosos a toda a prova, não se ficavam em formulas e experimentavam com o proprio corpo. Havia no Club officiaes de todas as graduações, de tenente a general, militares de todas as idades, dos que debutavam na carreira das armas, como dos que iam já encanecendo sobre os reparos. Muitos tinham ficado nos campos de batalha, cujos nomes estavam inscriptos no livro de honra do Gun-Club, e dos que tinham voltado a maior parte trazia no proprio corpo signaes indiscutiveis de intrepidez. Moletas, pernas de pau, braços articulados, mãos de gancho, maxilas de caoutchouc, craneos de prata, narizes de platina... a collecção era completa. O supradito Pitcairn calculou tambem que no Gun-Club havia um pouco menos de um braço por quatro pessoas e sómente duas pernas por cada seis socios. Mas os valentes artilheiros pouca importancia ligavam a similhantes ninharias, e com legitimo fundamento se ufanavam, quando o boletim da batalha contava o numero das victimas pelo decuplo dos tiros disparados. Porém um dia, triste e lamentavel dia, foi assignada a paz pelos sobrevivos da guerra; cessaram pouco a pouco as detonações, calaram-se os morteiros, os obuzes para largo tempo açaimados e os canhões de cabeça pendida, recolheram aos arsenaes; as balas empilharam-se nos parques, foram-se apagando as recordações sanguinolentas, brotaram com magnificencia os algodoeiros dos campos pinguemente adubados, foram-se fazendo velhos a par das dores e das saudades os fatos de luto, e o Gun-Club ficou immerso na mais profunda inacção. Um ou outro trabalhador afferrado e incansavel se entregava ainda a calculos balisticos e fazia seu pensamento dilecto de bombas gigantescas e obuzes incomparaveis. Mas sem pratica de que serviam theorias vãs? Por isso as salas do Club viam-se desertas, dormiam os creados nas antecamaras, os jornaes creavam bafio por cima das mesas, ouviam-se tristes roncos, que partiam dos cantos escuros das salas, e os membros do Gun-Club, outr'ora tão ruidosos, agora reduzidos ao silencio por uma paz desastrosa, adormeciam engolfados em meditações de artilheria platonica. «Que desconsolação, dizia uma noite o valente Tom Hunter, e no entretanto ia-lhe o lume do fogão carbonisando as pernas de pau: Nada que fazer! nem uma esperança! Que fastidiosa existencia! Onde vae o tempo em que as alegres detonações do canhão nos despertavam todas as manhãs? Esse tempo já lá vae, retorquiu o inquieto Bilsby, esperguiçando-se com os braços que já não tinha. Era um feliz tempo esse. Inventava qualquer o seu obuz, e apenas fundido, corria a experimenta-lo no inimigo; quando regressava, ao acampamento sempre tinha ouvido alguma palavra animadora a Sherman ou recebido um aperto de mão de Mac-Clellan! Mas hoje, os generaes voltaram aos seus balcões, e em vez de projectis, expedem inoffensivos fardos de algodão! Ai! por santa Barbara! Está perdido o futuro da artilheria na America! --É verdade, Bilsby, exclamou o coronel Blomsberry, são bem crueis estes desenganos! Deixa a gente um dia os seus habitos socegados, exercita-se no manejo das armas, troca Baltimore pelos campos de batalha, porta-se como um heroe, e dois ou tres annos depois, ha de perder o fructo de tantas fadigas, adormecer em deploravel ociosidade, e encaixar as mãos nas algibeiras.» Bem podia fallar o valente coronel, havia de ver-se em graves difficuldades, se quizesse dar tal prova de inactividade, e não eram as algibeiras que lhe faltavam. «E nem uma só guerra em perspectiva! disse então o famoso J.-T. Maston, coçando com o gancho de ferro o craneo de guttapercha. Não ha uma nuvem no horisonte, e tanto que fazer na sciencia da artilheria! Eu que lhes estou fallando, terminei esta manhã a _épure_, com plano, perfil e elevação de um morteiro que havia de fazer mudar as leis da guerra! --Sim? replicou Tom Hunter, recordando-se involuntariamente da ultima experiencia do honrado J.-T. Maston. --É verdade, respondeu este. Mas para que hão de servir tantos estudos levados a cabo, tantas difficuldades vencidas? Não será tudo isto trabalho absolutamente inutil? Parece que os povos do novo mundo se conluiaram para viver em paz, e até o nosso bellicoso _Tribune_[6] chegou a prognosticar imminentes catastrophes exclusivamente causadas pelo escandaloso crescer das populações. --Comtudo, Maston, retorquiu o coronel Blomsberry, na Europa ainda continua a guerra para sustentar o principio das nacionalidades! --E então? --Então! Talvez se podesse tentar por lá alguma cousa, e se acceitassem os nossos serviços... --Pensaes seriamente no que dizeis? exclamou Bilsby. Fazer balistica em proveito de estrangeiros! --Sempre era melhor do que não fazer nada, retorquiu o coronel. --De certo, sempre era um pouco melhor, disse J.-T. Maston, mas nem vale a pena pensar em similhante expediente. --E porque? perguntou o coronel. --Porque no velho mundo tem lá umas idéas ácerca de accesso e promoção, que estariam em opposição com todos os nossos habitos americanos. Imagina aquella gente que se não póde ser general em chefe sem ter servido como alferes, o que vale o mesmo que suppor que ninguem póde fazer uma boa pontaria, sem ter tambem sido o fundidor do canhão! Ora isto é nada mais nem menos do que... --Absurdo! concluiu Tom Hunter, lascando com o «bowie-knife»[7] os braços da poltrona, e pois que assim é, não temos mais remedio do que ir plantar tabaco ou distillar azeite de baleia! --Como assim, prorompeu em altos gritos J.-T. Maston; pois não havemos de empregar estes ultimos annos da nossa existencia no aperfeiçoamento das armas de fogo! Não ha de offerecer-se nova occasião de ensaiar o alcance dos nossos projectis! Nunca mais ha de illuminar-se a atmosphera com o relampago dos nossos canhões! Nem uma só difficuldade internacional ha de surgir que nos permitta declarar guerra a alguma das potencias transatlanticas! Não ha de haver algum francez que metta a pique um dos nossos _steamers_, ou algum inglez que enforque, em menoscabo do direito das gentes, ao menos tres ou quatro conterraneos nossos! --Não, Maston, respondeu o coronel Blomsberry, não é para nós tanta ventura. Não! nem um d'esses casos succederá, e que succedesse, nem ao menos haviamos de aproveita-lo! Vae-se de dia para dia a susceptibilidade americana. Vamos-nos effeminando. --É verdade que nos humilhâmos! replicou Bilsby. --E que nos humilham! accrescentou Tom Hunter. --Tudo quanto dizeis é mais que certo, replicou J.-T. Maston, ainda com maior vehemencia. Pairam na atmosphera mil motivos de guerra e não combatemos! Economisam-se braços e pernas, e em proveito de quem? de gente que não sabe o que lhes ha de dar que fazer! Não busquemos mais longe motivos de guerra; pois não é verdade que a America do Norte pertenceu outr'ora aos inglezes? --Certamente, respondeu Tom Hunter, espertando furioso o lume com a ponta da moleta. --Pois bem! continuou J.-T. Maston, porque é que a Inglaterra não ha de, por seu turno, pertencer aos americanos? --Nada mais era do que justiça, retorquiu o coronel Blomsberry. --Pois vão lá propor a idéa ao presidente dos Estados Unidos e verão como são recebidos! --Havia de receber-nos mal, murmurou Bilsby, por entre quatro dentes que lhe tinham escapado das batalhas. --Por minha fé, exclamou J.-T. Maston, nas proximas eleições escusa de contar com o meu voto! --Nem com os nossos, accrescentaram de commum accordo os bellicosos invalidos. --No entretanto, continuou J.-T. Maston, em conclusão, se me não fornecerem occasião para ensaiar o meu novo morteiro n'um campo de batalha, dou a minha demissão de socio do Gun-Club, e corro a enterrar-me nos desertos do Arkansas! --Iremos todos comvosco, responderam os interlocutores do ousado J.-T. Maston. Estavam as cousas n'estas alturas, exaltavam-se os espiritos cada vez mais, e o club estava ameaçado de proxima dissolução, quando um acontecimento inesperado veiu impedir a realisação de tão lastimosa catastrophe. Logo no dia seguinte áquelle em que se realisou a conversação que relatámos, cada um dos membros do club recebia uma circular concebida nos seguintes termos: «Baltimore, 3 de outubro.--O presidente do Gun-Club tem a honra de prevenir os seus collegas, que na sessão de 5 do corrente lhes fará uma communicação, que muito ha de interessa-los. Em consequencia lhes pede que, pondo de parte qualquer outro negocio, concorram á sessão para que são convidados pela presente. «De todos mui cordialmente.--_Impey Barbicane_. P. G. C.» CAPITULO II COMMUNICAÇÃO DO PRESIDENTE BARBICANE No dia 5 de outubro, ás oito horas da noite, havia apertão e multidão compacta nas salas do Gun-Club (Union-square, 21). Todos os membros d'aquelle club, que residiam em Baltimore, tinham acudido ao convite do presidente. Os socios correspondentes apeavam-se aos centos dos comboios expressos, nas ruas da cidade, e grande como era a «hall» (salão) das sessões, ainda assim aquella multidão immensa de sábios não pôde caber lá; assim a multidão refluia para todas as salas proximas e ainda para os corredores, e até ao meio dos pateos exteriores, onde se encontrava com o simples popular que fazia apertão ás portas; cada um procurava alcançar melhor logar; todos avidos de conhecer a importante communicação do presidente Barbicane, apertavam-se, empurravam-se, esmagavam-se com aquella liberdade de acção que é peculiar das massas educadas e creadas nas idéas do _self-government_[8]. N'aquella noite o forasteiro que o acaso tivesse levado a Baltimore, nem a peso de oiro teria conseguido penetrar no salão grande. Fôra este exclusivamente reservado para os socios residentes ou correspondentes; ninguem mais lá podia ser admittido, e até os notaveis da cidade e os magistrados do conselho dos _selectmen_[9] tinham tido que misturar-se com a turba dos seus administrados para apanharem de relance alguma novidade lá de dentro. Apesar d'isto a immensa «hall» apresentava um espectaculo verdadeiramente digno de excitar a curiosidade, e o vasto aposento estava maravilhosamente apropriado ao seu destino. Sustentavam-lhe os finos lavores da abobada, verdadeira renda esculpida a saca-bocados no ferro fundido, elevadas columnas compostas de canhões sobrepostos e apoiados em enormes morteiros. Nas paredes agrupavam-se enlaçadas em pittorescos florões panoplias de bacamartes, de arcabuzes, de carabinas de toda a especie, de armas de fogo antigas e modernas. Rebentava a chamma viva do gaz de um milheiro de revolvers agrupados em fórma de lustres, completando aquella esplendida illuminação girandolas de pistolas, e candelabros feitos de espingardas enfeixadas. Modelos de canhões, amostras de bronze, alvos crivados de buracos, placas quebradas pelo choque das balas do Gun-Club, collecções completas de calcadouros e lanadas, rosarios de bombas, collares de projectis, grinaldas de obuzes, n'uma palavra todas as ferramentas do artilheiro se encontravam ali em tão surprehendente e admiravel disposição, que levava a crer que o seu verdadeiro fim era mais ornamental do que mortifero. Contemplava-se no logar de honra resguardado por uma esplendida _vitrine_ um pedaço de culatra, quebrado e torcido pela força da polvora. Era uma preciosa reliquia do morteiro de J.-T. Maston. No fundo da sala, sobre uma espaçosa esplanada sentava-se o presidente ladeado por quatro secretarios. A cadeira presidencial levantada sobre um reparo esculpido, apparentava no conjuncto das robustas fórmas a figura de um morteiro de trinta e duas pollegadas, em pontaria por um angulo de noventa graus e suspensa em munhões, por fórma tal que o presidente podia dar-lhe, como a qualquer _rocking-chair_[10], um balanço muito agradavel nas occasiões de grande calor. Sobre a mesa, grande placa de ferro laminado, aguentada por seis coronadas, estava um tinteiro de gosto delicado: era feito de um biscainho deliciosamente cinzelado. Ao lado estava uma campainha de detonação, que na occasião propria soava como um revolver. E nas occasiões de discussão vehemente mal bastava esta campainha de novo genero para superar as vozes d'aquella legião de artilheiros enthusiasmados. Em frente da mesa presidencial estavam dispostos em zig-zags, como as circumvallações de uma trincheira, formando uma serie de bastiões e de cortinas, os bancos onde tomavam assento os socios do Gun-Club; e n'aquella noite podia afoitamente dizer-se «que estava bastante gente nas muralhas». O presidente era por demais conhecido, para que alguem acreditasse que havia de incommodar os collegas sem motivo de maior gravidade. Impey Barbicane era homem de quarenta annos, impassivel, frio, austero, de espirito eminentemente serio e concentrado, de temperamento a toda a prova e de caracter inabalavel; pouco cavalheiresco, e todavia aventuroso, cingia-se ás idéas praticas, ainda quando empenhado nos mais temerarios emprehendimentos; era o homem por excellencia da Nova Inglaterra, o colonisador dos estados do norte, o descendente d'aquelles Cabeças Redondas, que tão funestos foram para os Stuarts, o inimigo implacavel dos _gentlemen_ dos estados do sul, legitimos representantes dos antigos Cavalleiros da mãe patria. N'uma palavra, um yankee de antes quebrar que torcer. Barbicane fizera grande fortuna no commercio das madeiras; nomeado durante a guerra director de artilheria, mostrou-se fertil em invenções, e cheio de audacia em todas as suas idéas contribuiu poderosamente para os progressos d'aquella arma, communicando ás indagações experimentaes incomparavel actividade. Era homem de corporatura media, e que tinha, rara excepção no Gun-Club, todos os membros intactos. Parecia que as feições accentuadas lhe tinham sido talhadas a esquadro e tira-linhas, e se é verdade que, para adivinhar os instinctos de alguem, devemos olha-lo de perfil, Barbicane, examinado assim, apresentava os mais seguros indicios de energia, de audacia e de presença de espirito. N'aquelle instante, estava immovel na cadeira presidencial, mudo, absorto, com o olhar vago e profundo, com o rosto semi-occulto pelo chapéu de fórma alta, cylindro de seda preta que parece seguro a tarraxa no craneo de qualquer americano. [Figura: A sessão do Gun-Club (pag. 22).] Conversavam em torno d'elle e em voz alta os collegas, sem conseguirem distrahi-lo; abalançavam-se ao campo das supposições, olhavam o presidente, buscando em vão deduzir o X da sua imperturbavel physionomia. [Figura: O passeio á luz dos archotes (pag. 28).] Quando deram oito horas no relogio fulminante do salão, Barbicane levantou-se de subito, como que impellido por uma mola; calou-se tudo, e o orador, em tom um pouco emphatico, usou da palavra nos seguintes termos: «Estimaveis consocios, de ha muito que a paz infecunda veiu immergir os socios do Gun-Club em lastimosa inactividade. Depois de um periodo de alguns annos, tão cheio de incidentes, fomos forçados a abandonar os nossos trabalhos e a fazer alto de subito na senda do progresso. Não me arreceio de proclama-lo em voz bem alta, uma guerra qualquer que de novo nos pozesse as armas nas mãos, seria bem recebida... --Apoiado, á guerra! exclamou o impetuoso J.-T. Maston. --Ouçam! ouçam! disseram de todos os lados. --Porém a guerra, proseguiu Barbicane, a guerra é impossivel nas circumstancias actuaes, e por maiores que sejam as esperanças do meu honrado interruptor, penso que muitos annos hão de correr antes que os canhões americanos troem de novo no campo de batalha. É portanto necessario que a isso nos resignemos e que busquemos n'outra ordem de idéas alimento para a actividade que nos devora!» A assembléa percebeu que o presidente chegava ao ponto delicado; redobrou a attenção. «Ha mezes, valentes collegas, continuou Barbicane, que perguntei eu a mim proprio se, sem sair da nossa especialidade, poderiamos emprehender alguma d'essas grandes experiencias dignas do seculo XIX, e se nos permittiriam os progressos da balistica sair bem do nosso empenho. Em consequencia, inquiri, trabalhei, calculei, e dos meus estudos resultou a convicção de que havemos de saír-nos bem de um emprehendimento, que pareceria impraticavel em qualquer outro paiz. É este projecto, por longo tempo elaborado, que vae ser assumpto da minha communicação: é digno de vós, digno do passado do Gun-Club, e não póde deixar de fazer estrondo no mundo! --Bastante estrondo? perguntou um artilheiro enthusiasta. --Muito estrondo, no verdadeiro sentido da palavra, respondeu Barbicane. --Não interrompam! disseram muitas vozes. --Peço-lhes, pois, caros collegas, accrescentou o presidente, que me dêem completa attenção.» Um fremito percorreu a assembléa inteira. Barbicane, depois de, com gesto rapido, ter carregado o chapéu na cabeça, proseguiu no seu discurso com voz placida: Não ha um só de vós, estimaveis collegas, que não tenha visto a Lua, ou que, pelo menos, não ouvisse fallar n'ella. E não vos admireis de que venha aqui fallar-vos do astro das noites. Talvez esteja para nós reservado sermos os Colombos d'esse mundo ignoto. Seja eu comprehendido, auxiliado com todo o poder de que os meus socios dispõem, e conduzi-los-hei á conquista d'esse novo mundo, cujo nome ha de vir juntar-se aos dos trinta e seis estados que compõem este grande paiz da União! --Hurrah pela Lua! gritou, como um só homem, o Gun-Club inteiro. --Muito se tem estudado ácerca da Lua, continuou Barbicane, a massa, a densidade, o peso, o volume, a constituição, os movimentos, a distancia emfim d'este astro, e o papel que elle desempenha no mundo solar estão perfeitamente determinados: ha mappas selenographicos[11] cuja perfeição é igual senão superior á dos mappas terrestres: pela photographia têem-se obtido do nosso satellite provas de belleza imcomparavel. Resumindo, sabemos ácerca da Lua tudo quanto as mathematicas, a astronomia, a geologia e a optica poderam ensinar-nos; mas até hoje ainda se não estabeleceu meio algum directo de communicação com esse astro.» A ultima phrase do orador excitou tal interesse e surpreza na assembléa, que chegou a produzir violenta agitação. --Permittam-me, continuou este, que lhes traga á lembrança em poucas palavras, como foi que alguns homens exaltados, tendo embarcado em espirito para viagens imaginarias, pretenderam ter penetrado os segredos do nosso satellite. No seculo XVII, um tal David Fabricius, gabou-se de ter visto com os seus proprios olhos alguns habitantes da Lua. Em 1649, um francez, João Baudoin, publicou um livro intitulado a _Viagem feita ao mundo Lunar por Domingos Gonzalez, aventureiro hespanhol_. Na mesma epocha, deu á luz da publicidade Cyrano de Bergerac, aquella celebre expedição, que tanto renome teve em França. Algum tempo depois, outro francez (porque estes senhores entretem-se muito com a Lua) chamado Fontenelle escreveu a _Pluralidade dos mundos_, que foi, no seu tempo uma obra prima; verdade é que a sciencia em seu caminhar constante até as obras primas esmaga. Em 1835 um opusculo traduzido do jornal _New York American_ contava que sir John Herschell, enviado ao Cabo da Boa Esperança para ali fazer observações astronomicas, tinha conseguido, por meio de um telescopio aperfeiçoado por illuminação interior, trazer a Lua a uma distancia apparente de oitenta jardas[12]. Por esta fórma observára distinctamente na Lua cavernas, nas quaes viviam hippopotamos, verdejantes montanhas franjadas de renda de oiro, carneirinhos com armas de marfim, brancos cabritos montezes e até habitantes com azas membranosas como os morcegos. Este folheto, obra de um americano chamado Loche[13], teve grande voga. Mas pouco depois conheceu-se que não era senão uma mystificação scientifica, e os francezes foram as primeiras a rir-se d'elle. --Rir de um americano! exclamou J.-T. Maston; mas isso é um _casus belli_!... --Socegue o meu digno amigo, que antes de se rirem tinham sido os francezes perfeitamente embaidos pelo nosso compatriota. Para terminar esta breve resenha historica, accrescentarei que um tal Hans Pfaal de Rotterdam, elevando-se n'um balão cheio de um gaz tirado do azote e trinta e sete vezes mais leve que o hydrogeneo, chegou á Lua, depois de dezenove dias de viagem, e tambem que esta viagem não passou, como as anteriores, de uma tentativa da imaginação; era porém obra de um escriptor popular na America, engenho singular e contemplativo. É como se pronunciára o nome de Pöe. --Hurrah por Edgard Pöe! exclamou a assembléa electrisada pelas palavras do presidente. --Conclui o que tinha a dizer-vos, proseguiu Barbicane, no que diz respeito a tentativas que considerarei puramente litterarias e absolutamente insufficientes para estabelecer serias relações com o astro das noites. Devo todavia accrescentar, que alguns espiritos praticos tentaram já pôr-se em seria communicação com elle. Foi assim que ha alguns annos um geometra allemão propoz que se mandasse aos aridos steppes da Siberia uma commissão de homens de sciencia, para que n'aquellas vastas planicies fizessem desenhar por meio de reflectores luminosos, immensas figuras geometricas, entre outras a do quadrado da hypothenusa, vulgarmente chamada pelos francezes «le Pont aux ânes». «Todo o ser intelligente, dizia este geometra, deve comprehender qual o destino scientifico de taes figuras; portanto os selenitas[14], se é que existem, hão de responder por meio de figuras similhantes, e uma vez estabelecida a communicação, facil será inventar um alphabeto, que dê meio de conversar com os habitantes da Lua.» Assim fallava o geometra allemão; mas tal alphabeto nunca teve execução, e até hoje nenhuma ligação directa existiu entre a Terra e o seu satellite. Estava reservado para o engenho pratico dos americanos o porem-se em relação com o mundo sideral. E o meio de consegui-lo é simples, facil, certo, infallivel, e vae ser o assumpto da minha proposta.» Estas palavras tiveram por ecco uma immensa algazarra, uma tempestade de exclamações e de applausos. Não havia um só dos assistentes que não se tivesse deixado dominar, arrastar e enthusiasmar pelas palavras do orador. Ouçam! ouçam! silencio! era o que se ouvia de todos os lados. Logoque socegou a agitação, Barbicane continuou em voz mais grave o seu interrompido discurso: «Sabeis todos, disse, que progressos se tem feito em balistica de alguns annos a esta parte, e a que ponto de perfeição teriam chegado as armas de fogo se a guerra tivesse continuado. Tambem não ignoraes que póde affirmar-se, em geral, que a força de resistencia do canhão e a potencia expansiva da polvora não tem limitação. Pois bem! Partindo d'este principio, perguntei a mim proprio, se usando de um instrumento adequado, collocado em condições determinadas de resistencia, seria possivel enviar uma bala até a Lua!» Ao ouvir a assembléa estas palavras, exhalou-se a um tempo, de mil peitos arquejantes, uma exclamação de profundo pasmo; houve depois uma pausa silenciosa, similhante á profunda calmaria que precede as tempestades. E effectivamente ribombou o trovão, mas um trovão de applausos, de gritos, de clamores, que fez tremer a sala das sessões. O presidente queria fallar, e não podia, só passados dez minutos conseguiu fazer-se ouvir. «Deixem-me concluir, disse elle friamente. Estudei a questão sob todos os seus aspectos, ataquei resolutamente o problema, e dos meus calculos indiscutiveis resulta, que um projectil animado de uma velocidade inicial de doze mil jardas[15] por segundo, e dirigido para a Lua, ha de necessariamente lá chegar. Tenho pois a honra, estimaveis collegas, de propor-vos que tentemos esta pequena experiencia!» CAPITULO III EFFEITO DA COMMUNICAÇÃO BARBICANE É impossivel descrever o effeito produzido pelas ultimas palavras do honrado presidente. Que gritos! que vociferações! que successão de grunhidos, de hurrahs, de «hip! hip! hip!» de todos aquellas onomatopeas que superabundam na linguagem dos americanos. Era uma desordem, uma algazarra indescriptivel! Gritavam as bôcas, batiam as mãos, e os pés abalavam o pavimento das salas. Nem que todas as armas d'aquelle museu de artilheria se disparassem a um tempo teriam agitado com maior violencia as ondas sonoras. Nem o caso é para admirar. Artilheiros ha mais ruidosos que os proprios canhões. Barbicane permanecêra impassivel no meio de todos estes clamores enthusiastas; desejava talvez dirigir ainda mais algumas palavras aos consocios, porque pelos gestos reclamava silencio, e o timbre fulminante disparou tão violenta como inutilmente. Porém nem sequer o ouviam. Pouco depois arrancaram-n'o da cadeira presidencial e levaram-n'o em triumpho, passando das mãos dos fieis camaradas para os braços de uma multidão não menos exaltada. Não ha cousa n'este mundo capaz de causar pasmo a um americano. Muitas vezes se tem repetido que a palavra «impossivel» não é franceza. Certamente ha n'esta asserção troca de diccionario. Na America é que tudo é facil, tudo é simples, e pelo que diz respeito a difficuldades mechanicas, essas estão mortas já antes de nascerem. Nem um só yankee genuino teria permittido a si proprio sonhar sequer uma sombra de difficuldade entre o projecto Barbicane e a sua realisação. Dito e feito. O passeio triumphal do presidente prolongou-se durante a noite. Foi uma verdadeira marcha á luz dos archotes. Irlandezes, allemães, francezes, toda a casta de individuos heterogeneos de que é formada a população do Maryland, gritavam na sua lingua patria. Os vivas, os hurrahs e os bravos confundiam-se n'um enthusiasmo inesprimivel. Por coincidencia a Lua, como se percebêra que d'ella se tratava, brilhava n'aquella noite com uma serena magnificencia, e eclipsava com a intensa irradiação todas as luzes terrestres. Os yankees dirigiam todos os olhos para o disco scintillante do astro: saudavam-n'o uns com a mão, outros chamavam-lhe os nomes mais carinhosos; estes mediam-n'a com os olhos, aquelles ameaçavam-n'a de murro fechado. Um fabricante de instrumentos de optica de James-Fall-street fez fortuna a vender oculos desde as oito horas até á meia noite. O astro das noites era contemplado atravez dos vidros das lunetas, como se fôra qualquer _lady_ da alta sociedade. Os americanos procediam já para com elle com a sem-ceremonia de verdadeiros proprietarios. Quem os visse diria, que a loura Phoeba era já dominio d'aquelles conquistadores audazes, e parte integrante do territorio da União. E todavia mal começára ainda a agitar-se o problema de mandar-lhe um projectil, maneira um tanto aspera de encetar relações, mesmo com um satellite, porém muito usada entre nações civilisadas. Meia noite acabava de soar e o enthusiasmo não arrefecia; mantinha-se em igual nivel em todas as classes da população; magistrados, homens de sciencia, negociantes, logistas e carrejões, tanto os homens de intelligencia elevada e culta, como os estupidos e ignaros tinham sentido abalo profundo na mais delicada fibra de seu ser; o caso de que se tratava era um emprehendimento nacional, e por isso na cidade alta, na cidade baixa, nos caes banhados pelas aguas do Patapsco, nos navios fundeados nas docas, apinhava-se a multidão, ebria de alegria, de _gin_ e de _wisky_; conversavam todos, peroravam, discutiam, disputavam, approvavam ou applaudiam, desde o _gentleman_, que negligentemente recostado no canapé de algum botequim, defrontava com a sua _chope_ e de _sherry-cobler_[16], até ao aguadeiro, que se emborrachava com _mataratos_[17] n'alguma sombria taberna de Fells-Point. Comtudo, pela volta das duas horas, acalmou-se a emoção, e o presidente Barbicane conseguiu recolher a casa, moido, esfalfado e derreado. Nem um Hercules teria resistido a tal enthusiasmo. A turba foi pouco e pouco evacuando as praças e as ruas. Os quatro caminhos de ferro do Ohio, de Susquehanna, de Philadelphia e de Washington, que entroncam em Baltimore, foram lançar o publico hexogeneo nos quatro extremos dos Estados Unidos, e a cidade começou de repousar em relativa tranquillidade. Enganar-se-ia quem suppozesse que durante aquella memoravel noitada, só Baltimore fôra victima da agitação que descrevemos. Todas as grandes cidades da União, Nova-York, Boston, Albany, Washington, Richmond, a Cidade Crescente[18], Charleston, Mobile, desde o Texas até ao Massachussets, e desde o Michigan até ás Floridas, todas participaram d'aquelle delirio, porque os trinta mil socios correspondentes do Gun-Club, que já tinham conhecimento da carta do seu presidente, esperavam com igual impaciencia a famosa communicação de 5 de outubro, e portanto n'esta mesma noite, á medida que as palavras saíam dos labios do orador, iam correndo pelos fios telegraphicos, através dos Estados da União, com a velocidade de duzentas e quarenta e oito mil quatrocentas e quarenta e sete milhas[19] por segundo. Por consequencia póde dizer-se, com absoluta certeza, que os Estados Unidos, que têem dez vezes o tamanho da França, soltaram n'um mesmo instante um _hurrah_, unico e unanime, e que vinte e cinco mil corações, entumecidos de orgulho, bateram a mesma pulsação. No dia seguinte lançaram mão do assumpto mil e quinhentos periodicos diarios, hebdomadarios, mensaes ou bi-mensaes, e estudaram-n'o sob os differentes pontos de vista da physica, da meteorologia, da economia politica e da moral; pelo lado da preponderancia politica, e pelo da civilisação. Discutiam se a Lua era um mundo _acabado_, ou se estaria ainda em via de transformação. Perguntavam se era similhante á terra na epocha em que esta não tinha ainda atmosphera, qual era o aspecto da face lunar invisivel do espheroide terrestre, e ainda que se não tratava na occasião de mais do que enviar uma bala ao astro das noites, ninguem duvidava que esse facto seria ponto de partida para uma serie de novas experiencias, antes todos esperavam que um dia a America havia de penetrar os mais occultos arcanos do mysterioso disco. Havia até já quem parecesse arreceiar-se de que a conquista da Lua viesse a transtornar o equilibrio europeu. Discutiu-se é verdade o projecto, mas nem um unico jornal poz duvidas á possibilidade da realisação d'elle; antes pelo contrario até as revistas, folhetos, boletins e _magasines_ publicados por associações scientificas, litterarias ou religiosas se encarregaram de demonstrar as vantagens de tal tentativa. A _sociedade de historia natural_ de Boston, a _sociedade americana de sciencias e artes_ de Albany, a _sociedade geographica e estatistica_ de New-York, a _sociedade philosophica americana_ de Philadelphia, e o _Instituto Smithsoniano_ de Washington enviaram ao Gun-Club milhares de cartas de felicitação, com offerecimentos promptos de coadjuvação e dinheiro. Póde portanto dizer-se que nunca proposta alguma alcançou tão grande numero de adhesões; de hesitar, duvidar ou arreceiar-se pelo bom exito d'ella, é que ninguem se lembrou; e se a alguem occorresse, como de certo teria succedido na Europa, e particularmente em França, responder com mofas, caricaturas ou cançonetas epigrammaticas á idéa de enviar um projectil á Lua, de bem mau proveito lhe haviam de servir, que nem todos os _guarda-vidas_[20] do mundo lhe poderiam guardar as costas contra a indignação geral. Ha cousas de que não é permittido rir no novo mundo. A partir d'aquelle dia foi pois Impey Barbicane considerado como um dos mais notaveis e maiores cidadãos dos Estados Unidos, uma especie de Washington da sciencia; um só facto entre muitos bastará para evidenciar a que ponto chegára aquella infeudação subita de um povo inteiro a um homem. [Figura: O observatorio de Cambridge (pag. 35).] Passados alguns dias depois da famosa sessão do Gun-Club, annunciou, no theatro de Baltimore, o director de uma companhia ingleza a representação de _Much ado about nothing_[21]. Ora a população da cidade, que viu no titulo da comedia uma allusão offensiva aos projectos do presidente Barbicane, invadiu a sala, escangalhou os bancos, e obrigou o desgraçado do director a alterar o cartaz. O director, que era homem fino, soube curvar-se perante a vontade publica, e substituiu a desventurada comedia por _As you like it_[22]. O resultado foi ter, durante muitas semanas consecutivas, enchentes phenomenaes. [Figura: Movimentos de translação da Lua (pag. 43).] CAPITULO IV RESPOSTA DO OBSERVATORIO DE CAMBRIDGE Barbicane, apesar de todas as ovações de que era alvo, não desperdiçou um só instante. A primeira cousa de que tratou foi de reunir os collegas da mesa nas salas de commissão do Gun-Club, onde, com previa discussão, se accordou que fossem consultados os astronomos ácerca da parte astronomica do projecto, e que depois de conhecida a resposta d'estes, se discutissem então os meios mechanicos, sem descurar cousa alguma para tornar seguro o exito da grande experiencia. Redigiu-se por consequencia uma _nota_ extremamente precisa, contendo perguntas especiaes, que foi dirigida ao observatorio de Cambridge, no Massachussets. A cidade de Cambridge, onde foi fundada a primeira universidade dos Estados Unidos, é justamente nomeada pelo seu observatorio astronomico, onde se encontram reunidos homens de sciencia do mais elevado merecimento. É ali que funcciona o potente telescopio, com o qual Bond conseguiu resolver a nebulosa de Andromedes, e Clarke descobrir o satellite de Sirius. Todos os precedentes d'este estabelecimento celebre justificavam portanto a confiança do Gun-Club. E com effeito, dois dias depois, chegava ás mãos do presidente Barbicane a resposta tão impacientemente esperada. Era concebida nos seguintes termos: «Do director do observatorio de Cambridge para o presidente do Gun-Club, em Baltimore. «Logoque se recebeu a vossa honrosa missiva de 6 do corrente, endereçada ao observatorio de Cambridge em nome dos socios do Gun-Club, de Baltimore, reuniu-se o pessoal scientifico d'este estabelecimento, e houve por conveniente[23] responder como se segue: «As perguntas que lhe foram feitas são as seguintes: «1.^o Será possivel enviar um projectil até á Lua? «2.^o Qual é a distancia exacta que ha entre a Terra e o seu satellite? «3.^o Quanto tempo durará o trajecto do projectil ao qual tenha sido imprimida a velocidade inicial sufficiente, e por consequencia, em que momento deverá ser arremessado para que encontre a Lua n'um ponto determinado? «4.^o Em que momento prefixo estará a Lua na posição mais favoravel para ser alcançada pelo projectil? «5.^o A que ponto do céu deve fazer-se a pontaria com o canhão destinado a lançar o projectil? «6.^o Que logar ha de occupar a Lua no céu, no momento da partida do projectil? «Em relação á primeira pergunta: Será possivel enviar um projectil até á Lua? «Sim, é possivel alcançar a Lua com um projectil, comtanto que se consiga animar esse projectil de uma velocidade inicial de 12:000 jardas por segundo. Demonstra o calculo que tal velocidade é bastante. «Á medida que nos afastâmos da terra, a acção da gravidade diminue na rasão inversa do quadrado das distancias, isto é, por exemplo, para uma distancia tres vezes maior, torna-se nove vezes menor. Por consequencia o peso da bala ha de decrescer rapidamente, até chegar a ser completamente nullo, o que ha de succeder no momento em que a attracção da Lua fizer equilibrio á da Terra, isto é, quando tiver percorrido 47/52 avos do seu trajecto. N'esse momento o projectil não terá peso algum, e se passar alem d'esse ponto ha de caír _para_ a Lua só por effeito da attracção lunar. Fica portanto irrecusavelmente demonstrada a possibilidade theorica da experiencia; emquanto ao seu bom exito, esse depende unicamente da potencia do machinismo que se empregar. «Com respeito á segunda pergunta: Qual é a distancia exacta que ha entre a Terra e o seu satellite? «A Lua não descreve em torno da terra uma circumferencia de circulo, mas sim uma ellipse, n'um dos focos da qual está situado o nosso globo; d'ahi vem por consequencia que a Lua está, ora mais proxima, ora mais afastada da terra, ou em termos astronomicos, agora no apogeo, logo no perigeo; e a differença entre a maior e a menor distancia é relativamente bastante consideravel para que não devamos despreza-la. Com effeito, no apogeo está a Lua a 247:552 milhas (99:640 leguas de 4 kilometros) e no perigeo a 218:657 milhas sómente (88:010 leguas) da Terra, o que dá uma differença de 28:895 milhas (11:630 leguas), que é mais da nona parte do percurso total. Portanto a distancia perigea da Lua é que deve servir de base aos calculos. «Ácerca da terceira pergunta: Qual será a duração do trajecto do projectil ao qual tenha sido imprimida a velocidade inicial bastante, e consequentemente em que momento deverá ser lançado para que vá encontrar a Lua em um determinado ponto? «Se a bala conservasse indefinidamente a velocidade inicial de 12 jardas por segundo, que lhe fosse imprimida no momento da partida, gastaria apenas nove horas approximadamente para chegar ao seu destino; mas como a velocidade inicial ha de ir continuamente decrescendo, deduz-se, feitos os calculos, que o projectil ha de empregar 300:000 segundos ou 83 horas e 20 minutos para chegar ao ponto onde as attracções terrestre e lunar se equilibram, e a partir d'este ponto ha de cair na superficie da Lua em 50:000 segundos ou 13 horas, 53 minutos e 20 segundos. Convem pois lançar o projectil 97 horas, 13 minutos e 20 segundos antes do momento em que a Lua haja de chegar ao ponto de mira. «Em relação á quarta pergunta: Em que instante prefixo estará a Lua na posição mais favoravel para ser alcançada pelo projectil? «Em consequencia do que deixâmos dito, deve, em primeiro logar, escolher-se a epocha em que a Lua estiver no perigeo, e simultaneamente o instante em que passar pelo zenith, circumstancia que ha de diminuir ainda o percurso do projectil de uma distancia igual ao raio da terra, isto é, de 3:919 milhas, vindo por esta fórma a ser o trajecto definitivo de 214:976 milhas (86:410 leguas). Porém a Lua, que passa todos os mezes pelo seu perigeo, nem sempre se encontra no zenith no mesmo instante, e só a largos intervallos satisfaz simultaneamente a estas duas condições. Necessario é portanto esperar a coincidencia da passagem pelo perigeo com a passagem pelo zenith. «Por feliz acaso, no dia 4 de dezembro do anno proximo, a Lua ha de preencher as duas condições indicadas: á meia noite estará no perigeo, isto é, no ponto da sua orbita d'onde é mais curta a distancia á Terra, e passará no mesmo instante pelo zenith. «Em relação á quinta pergunta: A que ponto do céu deve fazer-se a pontaria com o canhão destinado a lançar o projectil? «Suppondo admittidas as considerações que precedem, o canhão deve ser dirigido para o zenith[24] do logar, por maneira que o tiro venha a ser perpendicular ao plano do horisonte e o projectil fuja assim mais rapidamente aos effeitos da attracção terrestre. Mas para que a Lua passe pelo zenith de um logar terrestre, é necessario que este logar não tenha latitude maior do que a declinação do astro, por outra que o logar esteja comprehendido entre o equador e os parallelos, que distam d'elle 28^o para norte ou sul. Em qualquer outro logar da terra o tiro havia necessariamente de ser obliquo, o que seria prejudicial ao bom exito da experiencia. «A respeito da sexta pergunta: Que logar deve occupar a Lua no céu, no instante da partida do projectil? «No momento em que o projectil for lançado ao espaço, a Lua que avança em cada dia 13^o, 10' e 35", deve estar afastada do ponto zenithal quatro vezes esta grandeza, isto é, 52^o, 42' e 20", espaço que corresponde ao caminho que ha de andar durante o percurso do projectil. Mas como se deve tambem attender ao desvio que ha de vir ao projectil do movimento de rotação da Terra, e como, quando a bala chegar á Lua, este desvio deve ter attingido uma grandeza igual a dezeseis raios terrestres, que contados sobre a superficie da Lua, dão proximamente 11^o, devem juntar-se estes 11^o aos já mencionados, que exprimem o atrazo da Lua, o que dá 64^o em numeros redondos. «Consequentemente o raio visual dirigido para a Lua deve, no momento do tiro, fazer com a vertical do logar um angulo de 64^o. «Taes são as respostas ás perguntas feitas pelos socios do Gun-Club ao observatorio de Cambridge. «Em resumo: «1.^o O canhão deve ser collocado n'uma região situada entre o equador e os parallelos de 28 graus de latitude norte ou sul. «2.^o Deve ser dirigido para o zenith do logar. «3.^o O projectil deve ir animado de uma velocidade inicial de doze mil jardas por segundo. «4.^o Deve ser lançado no dia 1.^o de dezembro do anno proximo, ás onze horas menos treze minutos e vinte segundos. «5.^o O projectil ha de encontrar a Lua, quatro dias depois da partida, no dia 4 de dezembro á meia noite exacta, no momento em que o astro passa pelo zenith. «Devem portanto os socios do Gun-Club dar começo sem demora aos trabalhos necessarios para realisar um emprehendimento de tal ordem, e prepararem-se para a execução no momento determinado, porque se deixarem passar a data indicada de 4 de dezembro, só dezoito annos e onze dias depois volverá a Lua a entrar nas mesmas condições em relação ao zenith e ao perigeo. «O pessoal scientifico do observatorio de Cambridge fica inteiramente á disposição do Gun-Club para todos os assumptos de astronomia theorica, e aproveita a occasião da presente para juntar as suas felicitações ás da America inteira. «Pelo pessoal scientifico do estabelecimento.--_J. M. Belfast_, director do observatorio de Cambridge.» CAPITULO V O ROMANCE DA LUA Um observador dotado de vista infinitamente penetrante e collocado no centro, n'aquelle centro ignoto, em torno do qual gravita o mundo, teria visto, na epocha cahotica do universo, o espaço cheio de myriades de atomos. Mas pouco e pouco, com o volver dos seculos produziu-se uma mudança; manifestou-se uma lei de attracção, á qual obedeceram os atomos outr'ora errantes; combinaram-se estes atomos chimicamente, segundo suas affinidades, fizeram-se moleculas e formaram esses aggregados nebulosos de que estão semeadas as profundezas do céu. Animaram-se então estes aggregados de um movimento de rotação em volta do seu ponto central, e este centro formado de moleculas vagas poz-se tambem a girar sobre si mesmo, ao passo que se ia progressivamente condensando. Segundo as leis immutaveis da mechanica, á medida que se lhe minguava o volume pela condensação, ia-se-lhe accelerando o movimento de rotação e, persistindo estes dois effeitos, de cada centro, resultou uma estrella principal, novo centro do aggregado nebuloso. Se o observador olhasse então attentamente, teria visto succeder com as outras moleculas do aggregado, o mesmo que succedêra com a estrella central: condensaram-se adquirindo simultaneamente um movimento de rotação progressivamente accelerado, e gravitaram em torno da central, transformadas em outras tantas estrellas. E assim ficava formada uma nebulosa[25]. Não menos de cinco mil nebulosas conhecem, na actualidade, os astronomos. Ha uma, entre estas cinco mil nebulosas, a que os homens chamaram via lactea[26], e que contém dezoito milhões de estrellas, cada uma das quaes se transformou em centro de um mundo solar. Se o observador, rodeado por estes dezoito milhões de astros, volvesse especialmente a attenção para um dos mais modestos e menos brilhantes[27], para uma estrella de quarta ordem, que orgulhosamente appellidâmos _o Sol_, debaixo dos olhos lhe teriam succedido todos os phenomenos a que é devida a formação do universo. Effectivamente havia de ver esse Sol, ainda no estado gazoso e composto de moleculas moveis, a girar em torno do proprio eixo para concluir o trabalho de concentração, e este movimento, subordinado ás leis da mechanica, havia accelerar-se com a diminuição do volume, e um instante havia de chegar em que a força centrifuga venceria a força centripeta, que attrahe as moleculas para o centro. Outro phenomeno então havia de realisar-se diante dos olhos do observador, as moleculas situadas no plano do equador, soltando-se como a pedra da funda de que subito rebenta a corda, haviam de ir formar, em volta do Sol, anneis concentricos como o de Saturno. A estes anneis de materia cosmica, animados de movimento de rotação em volta da massa central, chegaria depois a vez de partir-se e decompor-se em nebulosidades secundarias, o que vale o mesmo que dizer, em planetas. Concentrada então toda a attenção do observador sobre os planetas havia de ver realisarem-se n'elles os mesmos phenomenos que observára no Sol. De cada um d'elles dimana um ou mais anneis cosmicos, origens dos astros de ordem inferior a que chamâmos satellites. Subindo assim do atomo á molecula, da molecula ao aggregado nebuloso, do aggregado nebuloso á nebulosa, da nebulosa á estrella principal, da estrella principal ao Sol, do Sol ao planeta, do planeta ao satellite, examinâmos a serie inteira de transformações por que passaram os corpos celestes desde os primeiros dias do mundo. O Sol, que parece perdido na immensidade do mundo estellar, está todavia ligado pelas ultimas theorias da sciencia á nebulosa chamada via lactea. Ainda que no meio das regiões ethereas nos pareça pequeno, é todavia o centro de um mundo, e é enorme, poisque o seu volume é igual a mil e quatrocentas vezes o volume da Terra. Em torno d'ella gravitam oito planetas, que nos primeiros tempos da creação lhe sairam das proprias entranhas. São estes planetas, progredindo do mais proximo até ao mais remoto, Mercurio, Venus, a Terra, Marte, Jupiter, Saturno, Urano e Neptuno. Alem d'estes circulam, regularmente entre Marte e Jupiter, outros corpos de volume menos consideravel, talvez restos errantes de algum astro quebrado em milhares de pedaços; d'estes conta o telescopio não menos de noventa e sete[28]. Alguns d'estes servidores que o Sol mantém nas respectivas orbitas ellipticas por força da grande lei da gravitação, tambem têem seus satellites. Urano tem oito, Saturno oito, Jupiter quatro, Neptuno talvez tres, a Terra só um; este, que é um dos menos importantes do mundo solar, chama-se Lua, e é o que o engenho audaz dos americanos pretendia conquistar. O astro das noites, já pela proximidade relativa a que está, já por virtude do espectaculo rapidamente renovado das diversas phases que apresenta, partilhou sempre com o Sol a attenção dos habitantes da Terra; mas o olhar para o Sol cansa, e os esplendores da luz solar forçam os contempladores d'este astro a baixar os olhos. A loura Phoeba é mais humana, e cheia de modesta graça deixa-se ver com complacencia; é suave para a vista, pouco ambiciosa, e comtudo toma ás vezes a liberdade de eclipsar seu irmão, o radiante Apollo, sem que nunca fosse eclipsada por este. Comprehenderam os mahometanos a gratidão que era devida á fiel amiga da Terra; por isso regularam pela revolução d'ella a contagem dos mezes[29]. Votaram os primeiros povos culto particular a esta casta deusa. Chamaram-lhe os egypcios Isis, os phenicios Astartea, e os gregos adoraram-n'a sob o nome de Phoeba, como filha de Jupiter e de Latona, e explicavam os eclipses por visitas mysteriosas de Diana ao bello Endymião. Diz-nos a lenda mythologica, que o leão de Nemea, antes de apparecer na Terra, percorrêra as campinas da Lua, e o poeta Agesianax, citado por Plutarcho, celebrou em verso os dois olhos, o encantador nariz e a bôca amavel, que figuram as partes luminosas da adoravel Seléné. [Figura: Vista da Lua (pag. 47).] Porém se os antigos comprehenderam perfeitamente o caracter, o temperamento, emfim as qualidades moraes da Lua, sob o ponto de vista mythologico, não é menos verdade, que os mais sabedores d'elles eram extremamente ignorantes pelo que diz respeito a selenographia. [Figura: Barbicane levanta-se para fallar (pag. 58).] Todavia, muitos dos astronomos d'essas epochas longiquas, descobriram algumas particularidades confirmadas pela sciencia dos nossos dias, e se os arcadios pretenderam ter habitado a Terra em epocha em que ainda não existia a Lua, se Simplicius a julgou immovel e ligada á abobada de crystal, se Tatius a considerou como um fragmento destacado do disco solar, se Clearco, discipulo de Aristoteles, fazia d'ella um espelho polido em que se reflectia a imagem do Oceano, se outros finalmente a consideraram como um aggregado de vapores exhalados pela Terra, ou um globo, metade de fogo, metade de gêlo, que girava sobre si mesmo, alguns sabios por meio de observações sagazes, e postoque desajudados de instrumentos de optica, suspeitaram pelo menos a existencia da maior parte das leis que regem o astro das noites. Assim é que Thales de Mileto, 460 annos antes de Jesus Christo, opinou que a Lua era illuminada pelo Sol. Aristarcho de Samos deu verdadeira explicação das phases. Cleomene ensinou que o brilho do disco lunar vinha de luz reflexa. Berosio o chaldaico descobriu que a duração de uma rotação da Lua era igual á da sua revolução, e explicou por esta fórma o facto da Lua ser vista da Terra sempre pela mesma face. Finalmente Hipparco, duzentos annos antes da era christã, reconheceu a existencia de desigualdades nos movimentos apparentes do satellite da Terra. Estas differentes observações foram confirmadas no decorrer dos tempos e serviram de proveito aos astronomos mais modernos. Ptolomeu no seculo XVI, e o arabe Abul-Wefa no seculo X completaram as indicações feitas por Hipparco ácerca das desigualdades que apparenta o movimento da Lua na linha ondulada, que tem por orbita, sob a acção do Sol. Mais proximos de nós, Copernico, no seculo XV, e Tycho Brahe no seculo XVI explicaram completamente o systema do mundo e o papel que desempenha a Lua no conjuncto dos corpos celestes. N'esta epocha ficaram, com muita approximação, determinados todos os movimentos lunares, mas da constituição physica do astro pouca cousa era conhecida. Foi por esse tempo que Galileu explicou os phenomenos luminosos que succediam em algumas phases, pela existencia de montanhas lunares, a que attribuiu uma altura media de 4:500 toezas. Depois de Galileu, Hevelius, astronomo de Dantzig, avaliou mais pelo baixo as mais elevadas d'estas alturas em 2:600 toezas; verdade é que Riccioli, confrade d'este, tornou a corrigir esta apreciação, elevando-as a 7:000 toezas. Nos fins do seculo XVIII Herschell, ajudado por um telescopio de poderoso alcance, reduziu mui notavelmente as medidas precedentes, attribuindo ás montanhas mais altas a elevação de 1:900 toezas, e abaixando a media das differentes alturas a 400 toezas, não mais. Mas tambem Herschell se enganava, e só pelas observações de Shroeter, Louville, Halley, Nasmyth, Bianchini, Pastorf, Lohrman, Gruithuysen, e principalmente pelos estudos pacientes de Beer e Moedler se conseguiu resolver definitivamente o problema. Graças a estes homens de sciencia é hoje perfeitamente conhecida a elevação das montanhas da Lua. Por virtude d'estes mesmos trabalhos completava-se o reconhecimento da Lua; apparecia o astro crivado de crateras, e affirmava-se mais em cada observação a natureza vulcanica d'elle. Concluiu-se da ausencia de refracção nos raios dos planetas occultados pela Lua, a falta quasi absoluta de atmosphera n'este astro. Da falta de ar seguia-se concludentemente a falta de agua. Ficou portanto bem claro, que se existiam selenitas, deviam, para existir em taes condições, possuir organisação especial e notavelmente differente da dos habitantes da Terra. Finalmente, graças aos methodos novos, empregaram-se em constantes inquirições ácerca da Lua instrumentos mais perfeitos; não deixaram os astronomos por explorar nem um só ponto da sua face visivel, devendo notar-se que o diametro lunar mede 2:150 milhas[30]; a superficie é 1/13 avos da superficie do nosso globo[31], o volume é 1/49 avos do volume do espheroide terrestre; mas nenhum dos segredos da Lua podia occultar-se aos olhos dos astronomos, e estes habeis homens de sciencia foram ainda mais longe nas prodigiosas observações que relatâmos. Por esta fórma notaram os observadores, que na epocha da lua cheia apparecia o disco do astro, em algumas regiões, raiado por linhas brancas, e nas epochas das outras phases, raiado por linhas negras. Estudando com mais attenção o phenomeno, conseguiram perceber exactamente a natureza d'aquellas linhas. Eram sulcos compridos e estreitos, cavados entre margens parallelas e que em geral iam terminar nos contornos de crateras. O comprimento dos sulcos estava comprehendido entre 10 e 100 milhas, e a largura era proximamente de 800 toezas. Deram-lhes os astronomos o nome de _ranhuras_; mas a dar-lhe este nome se limitou o seu saber. O problema de saber se estas ranhuras eram ou não leitos seccos de antigos rios não poderam resolve-lo completamente. Os americanos já concebiam a esperança de que, mais dia menos dia, haviam de determinar com exactidão aquelle facto geologico. Reservavam tambem para opportunidade propria fazer um reconhecimento sobre a serie de trincheiras parallelas descobertas na superficie da Lua por Gruithuysen, sabio professor de Munich, que as reputa um systema de fortificações levantadas pelos engenheiros selenitas. Estes dois pontos, ainda obscuros, e certamente muitos outros, nunca poderão ser definitivamente regulados, sem que se estabeleça primeiro communicação directa com a Lua. Em relação á luz lunar nada havia já que aprender: era sabido que era trezentas mil vezes mais fraca que a do Sol, e que o calor que a acompanha não tem acção apreciavel sobre os thermometros. O phenomeno da luz cendrada esse explica-se naturalmente pelo effeito dos raios do Sol reflectidos na Terra, e que depois da reflexão se dirigem para a Lua. Parece por este phenomeno completar-se o disco lunar, quando nas epochas da sua primeira e ultima phase se nos apresenta sob a fórma de um crescente. O que deixâmos dito representava o peculio de conhecimentos adquiridos, em relação ao satellite da Terra, peculio que o Gun-Club tentava acrescentar sob todos os pontos de vista cosmographicos, geologicos, politicos e moraes. CAPITULO VI O QUE NÃO É POSSÍVEL IGNORAR E O QUE JÁ NÃO É PERMITTIDO ACREDITAR NOS ESTADOS UNIDOS A proposta Barbicane tivera como resultado immediato trazer para a tela da discussão todos os factos astronomicos, relativos ao astro das noites. Todos se empenharam em estuda-lo com assiduidade. Parecia que a Lua apparecêra pela vez primeira acima do horisonte, e que ninguem ainda a tinha visto nos céus. Tornou-se o astro da moda; foi durante algum tempo a _leôa_ do dia, sem que por isso parecesse menos modesta, e tomou logar entre as _estrellas_, sem que d'ahi lhe viesse maior altivez. Os jornaes resuscitaram as antigas anecdotas, em que desempenhava papel o _sol dos lobos_: trouxeram á memoria do publico as influencias que attribuiu á Lua a ignorancia dos primeiros seculos; cantaram-n'a emfim em todos os tons, e pouco faltou para que lhe attribuissem algum dito chistoso. A America inteira foi atacada de selenomania. As revistas scientificas tambem por sua parte estudaram o assumpto; mas, tratando mais especialmente dos problemas que diziam respeito ao projecto do Gun-Club, deram publicidade á carta do observatorio de Cambridge, commentando-a e approvando-a sem restricções. Por encurtar diremos que não foi desde então permittido, nem ao mais illetrado de todos os yankees, ignorar um unico facto relativo ao nosso satellite, nem á mais crendeira de todas as velhas matronas americanas, continuar agarrada aos erros supersticiosos, que lhe dizem respeito. Entrava-lhes a sciencia em casa sob todas as fórmas; penetrava-lhes pelos olhos e pelos ouvidos; era impossivel ser um asno... em assumptos astronomicos. Até então muitas pessoas ignoravam como podéra calcular-se a distancia que ha entre a Terra e Lua. Aproveitou-se a occasião para lhes ensinar que esta distancia se avaliava pela medida da parallaxe lunar. E a quem a palavra parallaxe causava estranheza dizia-se, que significava o angulo formado por duas linhas rectas tiradas de cada uma das extremidades do raio terrestre para a Lua. A quem punha em duvida a perfeição do methodo, provava-se, sem detença, que não sómente a distancia da Terra á Lua era na realidade de duzentas e trinta e quatro mil trezentas e quarenta e sete milhas (94:330 leguas), mas tambem que os astronomos não erravam n'esta avaliação nem setenta milhas (30 leguas). Aos que estavam pouco ou nada familiarisados com os movimentos da Lua, demonstravam os jornaes quotidianamente que este astro tem dois movimentos distinctos, o primeiro chamado de rotação, em torno de um eixo; o segundo chamado de revolução, em volta da Terra, que ambos se completam em tempos iguaes, isto é, em vinte e sete dias e um terço [32]. O movimento de rotação é o que dá origem aos dias e ás noites na superficie da Lua, devendo notar-se que não ha senão um dia e uma noite por mez lunar, e que cada dia ou cada noite dura trezentas e cincoenta e quatro horas e um terço. Mas, por felicidade da Lua, a sua face, que está voltada para o globo terrestre, é illuminada por este com a intensidade luminosa de quatorze luas. A outra face, que é sempre invisivel, tem por isso mesmo trezentas e cincoenta e quatro horas de noite absoluta, apenas temperada pela _pallida claridade que dimana das estrellas_. Este phenomeno provém unicamente da particularidade já citada, de que os movimentos de rotação e de revolução se completam em tempos rigorosamente iguaes, e realisa-se tambem, segundo Casini e Herschell, nos satellites de Jupiter, e provavelmente em todos os demais. Em certas cabeças bem dispostas, mas um tanto duras, custava a entrar, á primeira, que a Lua voltava invariavelmente a mesma face para a terra, durante a sua revolução, pela rasão de que no mesmo lapso de tempo fazia um giro completo em torno do seu eixo. Mas a estes dizia-se: «Entrae na vossa casa de jantar, e dae uma volta completa á roda da mesa, olhando sempre para o centro d'ella; quando tiverdes completado o vosso passeio circular, tereis feito um giro perfeito sobre vós mesmos, visto como o vosso olhar ha de ter percorrido successivamente todos os pontos da sala. Ora pois! a sala é o céu, a mesa é a Terra, e a Lua sois vós!» E íam-se satisfeitissimos com a comparação. Como acabâmos de ver, a Lua mostra constantemente a mesma face á Terra; todavia, para fallar com rigor, devemos acrescentar, que, em virtude de um certo movimento de oscillação de norte para sul e de oeste para leste, chamado libração, podemos ver um pouco mais de metade da superficie do globo lunar, cincoenta e sete centesimos, proximamente. Quando os ignorantes chegaram a saber, com respeito ao movimento de rotação da Lua, tanto como o director do observatorio de Cambridge, começou a inquietar-lhes o espirito o movimento de revolução do satellite em volta da Terra, mas em curto espaço acabaram de os instruir vinte e tantas revistas scientificas. Aprenderam então que o firmamento, com a sua infinidade de estrellas, póde ser considerado como um immenso mostrador, por sobre o qual passeia a Lua, indicando a hora verdadeira a todos os habitantes da Terra, e que é n'este movimento que o astro das noites apresenta as suas differentes phases. Mais, que é Lua cheia, quando está em opposição com o Sol, isto é, quando estão os tres astros na mesma linha recta, estando a Terra no meio; que a Lua é nova, quando está em conjuncção com o Sol, isto é, quando está entre este e a Terra; e, finalmente, que a Lua entra no quarto primeiro ou no ultimo, quando está no vertice de um angulo recto, formado pelas duas rectas que d'ella se dirigem para a Terra e para o Sol. Alguns yankees mais perspicazes concluiam d'aqui, que não podia haver eclipses senão nas epochas de conjuncção e de opposição, e não deduziam mal. Na conjuncção a Lua póde eclipsar o Sol, e na opposição é a Terra que póde eclipsar a Lua, e se em cada revolução lunar não ha dois eclipses, é porque o plano, segundo o qual se move a Lua, é inclinado sobre a ecliptica, por outra, sobre o plano no qual se move a Terra. Em relação á altura a que o astro das noites póde subir acima do horisonte estava tudo dito na carta do observatorio de Cambridge. Todos ficaram sabendo que tal altura varia com a latitude do logar de observação, e que as unicas zonas do globo nas quaes a Lua passa pelo zenith, isto é, vem collocar-se directamente por cima da cabeça dos que a contemplam, estão forçosamente comprehendidas entre os parallelos de 28^o e o equador. D'ahi vinha a importante recommendação de tentar a experiencia n'um logar qualquer d'aquella parte do globo, para que o projectil podesse ser lançado verticalmente, e escapar-se por isso mais depressa á acção da gravidade. Era esta condição essencial para o bom exito da empreza, e não deixava de preoccupar vivamente a opinião. Ácerca da linha seguida pela Lua na sua revolução em volta da Terra, tinha o observatorio de Cambridge ministrado conhecimentos bastantes, para que os ignorantes de todos os paizes ficassem sabendo que esta linha é uma curva reentrante, não um circulo, mas uma ellipse, n'um dos focos da qual está situada a Terra. Esta especie de orbitas ellipticas é commum a todos os planetas, assim como a todos os satellites, e prova-se rigorosamente na mechanica racional que não podia succeder por outra fórma. Bem entendido estava que a Lua no apogeo está mais longe da Terra, e no perigeo mais proxima. Ora eis-aqui o que por vontade ou sem ella sabia qualquer americano, e o que ninguem decentemente podia ignorar. Porém, se os verdadeiros principios se vulgarisaram com rapidez, muito mais difficil foi extirpar grande quantidade de erros e illusorios temores. Assim, por exemplo, algumas pessoas muito de bem, sustentavam que a Lua era um antigo cometa, que no percurso da sua orbita alongada em volta do Sol, tinha vindo a passar proximo da Terra que o retivera no seu circulo de attracção. Pretendiam taes astronomos de sala explicar por esta maneira o aspecto requeimado da Lua, desgraça irreparavel de que accusavam o astro radiante do dia. Verdade seja, que, quando alguem lhes fazia notar que os cometas tem atmosphera, e que a Lua pouca ou nenhuma tem, tinham grande difficuldade em responder. Outros, que pertenciam á raça d'aquelles que por tudo tremem e se arreceiam, manifestavam singulares temores a respeito da Lua; tinham ouvido dizer que desde as observações feitas no tempo dos Califas, o movimento de revolução do astro se ía accelerando em certa proporção; d'aqui deduziam, é verdade que com rigorosa logica, que á tal acceleração no movimento devia corresponder diminuição na distancia dos dois astros, e que prolongando-se este duplo effeito indefinidamente, a Lua havia de acabar um dia por cair sobre a Terra. Socegaram todavia estes animos timoratos, e deixaram de temer pela sorte das gerações futuras, quando lhes ensinaram que, segundo os calculos do illustre mathematico francez Laplace, esta acceleração do movimento lunar está comprehendida entre estreitos limites, e que não ha de tardar que lhe succeda uma proporcional diminuição na velocidade, e que por consequencia não poderá, nos seculos futuros, ser alterado o equilibrio do mundo solar. Restava, por ultimo, a classe dos ignorantes supersticiosos, e estes nunca se contentam em não saber; sabem até o que não existe, e, a respeito da Lua, sabiam cousas por ahi alem. Consideravam alguns o disco lunar como uma especie de espelho polido, por intermedio do qual os homens se podiam ver uns aos outros e communicarem-se reciprocamente os pensamentos, ainda que collocados em differentes pontos da Terra; outros affirmavam que por cada milheiro de Luas novas observadas, novecentas e cincoenta tinham trazido comsigo notaveis acontecimentos, taes como cataclysmos, revoluções, tremores de terra, diluvios, etc. Acreditavam por isso na influencia mysteriosa do astro das noites sobre os destinos do homem; consideravam-no como _verdadeiro contrapeso_ da existencia; pensavam que cada selenita está ligado a um habitante da Terra por um vinculo sympathico; sustentavam, como o dr. Mead, que o systema vital está inteiramente dependente das influencias lunares, affirmando, sem admittir replica, que os rapazes nascem quasi exclusivamente na Lua nova, e as raparigas no quarto minguante, etc., etc. Mas por fim não houve mais remedio senão renunciar ás crendices e erros vulgares, e contentar-se sómente com a verdade, e se a Lua, despojada da sua influencia, perdeu a importancia para os espiritos de alguns d'aquelles que são cortezãos de todos os poderes, se alguns lhe voltaram as costas, nem por isso deixou de ter por si a manifestação de uma immensa maioria. Consistiu desde então a unica ambição de todos os yankees em tomar posse d'aquelle novo continente aerio e em arvorar no mais alto vertice d'elle a bandeira estrellada dos Estados Unidos da America. CAPITULO VII O HYMNO DA BALA O observatorio de Cambridge tinha estudado, na memoravel carta de 7 de outubro, o assumpto pelo lado astronomico, mas estava ainda sem solução o problema mechanico. As difficuldades do caso pareceriam insuperaveis em qualquer outro paiz do mundo, mas na America resolveu-se o negocio como de brincadeira. O presidente Barbicane, sem perda de tempo, tinha escolhido entre os socios do Gun-Club uma commissão executiva. A commissão estava obrigada a elucidar, em tres sessões, os tres grandes problemas do canhão, do projectil e das polvoras; compunha-se de quatro membros todos muito sabedores no assumpto, Barbicane, com voto de desempate, o general Morgan, o major Elphiston, e finalmente o inevitavel J.-T. Maston, ao qual foram confiadas as importantes funcções de secretario relator. [Figura: A Columbiada Rodman (pag. 61).] No dia 8 de outubro reuniu-se a commissão em casa do presidente Barbicane, rua da Republica n.^o 3, e como fosse de grande importancia que as exigencias do estomago não viessem a perturbar tão grave discussão, sentaram-se os quatro socios do Gun-Club em volta de uma mesa coberta de bandejas de sandwiches e de amplos bules de chá. Em seguida atarraxou J.-T. Maston a pena no gancho de ferro que lhe servia de mão direita e abriu-se a sessão. [Figura: O canhão da ilha de Malta (pag. 63).] Barbicane encetou a discussão pela seguinte fórma: «Caros collegas, temos de resolver um dos problemas mais importantes da balistica, a sciencia por antonomasia, a que trata do movimento dos projectis, isto é, dos corpos arremessados ao espaço, por uma força de impulsão qualquer e depois abandonados a si proprios. --Ai! balistica! balistica! exclamou J.-T. Maston em tom commovido. --Talvez parecesse mais logico, proseguiu Barbicane, dedicar esta primeira sessão á discussão do machinismo... --E na verdade, interrompeu o general Morgan. --Todavia, continuou Barbicane, depois de reflectir maduramente, pareceu-me que o assumpto projectil devia ter primazia sobre o assumpto canhão, e que as dimensões d'este deveriam depender das d'aquelle. --Peço a palavra, gritou J.-T. Maston. Foi-lhe concedida a palavra com a boa vontade de que se tornava merecedor pelos seus magnificos antecedentes. «Meus bons amigos, disse Maston, em tom de inspiração, o nosso presidente tem rasão em dar a primazia ao assumpto projectil sobre todos os outros! A bala que ora vamos arremessar á Lua é um mensageiro, um embaixador, e dêem-me licença que a considere pelo lado puramente moral.» Esta maneira nova de encarar um projectil excitou singularmente a curiosidade dos membros da commissão; todos se prepararam para prestar a mais solícita attenção ás palavras de J.-T. Maston. «Caros collegas, proseguiu este; serei breve, porei de parte a bala physica, a bala que mata, para considerar sómente a bala mathematica, a bala moral. Para mim a bala é a mais esplendida manifestação do poder do homem; na bala resume-se este poder todo inteiro, e foi quando a inventou que o homem mais se approximou do Creador! --Muito bem! disse o major Elphiston. --E na verdade, exclamou o orador, se Deus fez as estrellas e os planetas, o homem fez a bala, que é o _criterium_ das velocidades terrestres e uma imitação, em menores proporções, dos astros que erram no espaço, que não são mais do que outros tantos projectis! Pertence a Deus a velocidade da electricidade, a Deus a velocidade da luz, a velocidade das estrellas, a velocidade dos cometas, a velocidade dos planetas, a velocidade dos satellites, a velocidade do som, a velocidade do vento! Mas a nós os homens a velocidade da bala, cem vezes superior á velocidade da locomotiva ou do mais rapido corcel!» J.-T. Maston estava exaltado; entoando á bala este hymno sagrado, percebiam-se-lhe na voz inflexões lyricas. «Querem algarismos? proseguiu elle; ei-los, e que fallam bem alto! Olhem simplesmente a modesta bala de vinte e quatro[33], que corre oitocentas mil vezes menos veloz que a electricidade, seiscentas e quarenta mil vezes menos veloz que a luz, setenta e seis vezes menos veloz que a Terra, no movimento de translação em volta do Sol, e que todavia, quando sáe do canhão, excede em rapidez o som[34], anda 200 toezas em cada segundo, 2:000 toezas em 10 segundos, 14 milhas (6 leguas) em cada minuto, 840 milhas (360 leguas) por hora, 27:100 milhas (8:640 leguas) por dia, ou, o que vale o mesmo, 7.336:500 milhas (3.155:760 leguas) por anno, velocidade igual á dos pontos do equador no movimento de rotação do globo. Gastaria portanto 11 dias para ir á Lua, 12 annos para chegar ao Sol, 360 annos para alcançar Neptuno, situado no extremo limite do mundo solar. Eis o que fazia tão modesta bala, producto de mãos humanas! Que será quando vintuplicando-lhe a velocidade, a arremessarmos com a velocidade de 7 milhas por segundo! Ah! soberba bala! esplendido projectil! Exulto em acreditar que has de ser recebida lá em cima com todas as honras devidas a um embaixador terrestre!» Com repetidos hurrahs applaudiram os auditores esta altisonante peroração, e J.-T. Maston sentou-se extremamente commovido e recebendo felicitações de todos os collegas. «E agora, disse Barbicane, que já demos largas á poesia, atiremo-nos directamente ao assumpto.» --Estamos promptos, responderam os membros da commissão, absorvendo ao mesmo tempo meia duzia de sandwiches por cabeça. --Já tendes conhecimento do problema que temos de resolver, continuou o presidente; trata-se de imprimir a um projectil uma velocidade de 12:000 jardas por segundo. «Tenho rasões para acreditar que havemos de conseguir bom resultado. Mas, por agora, limitemo-nos a examinar as velocidades obtidas até hoje; o general Morgan póde instruir-nos cabalmente a este respeito. --E com tanta maior facilidade, respondeu o general, que, durante a guerra, fui eu membro da commissão de experiencias. Dir-vos-hei, pois, que os canhões de cem de Dahlgreen, cujo alcance era de 2:500 toezas, imprimiam ao projectil respectivo a velocidade inicial de 500 jardas por segundo. --Bem. E a Columbiada[35] Rodman, perguntou o presidente? --A Columbiada Rodman, ensaiada no forte de Hamilton, proximo a New York, arremessava uma bala, que tinha de peso meia tonelada, á distancia de 6 milhas, com a velocidade de 800 jardas por segundo, resultado este a que nunca chegaram, nem Armstrong, nem Palisser, em Inglaterra. --Oh! os inglezes! murmurou J.-T. Maston, apontando para o horisonte leste com o temivel gancho. São portanto essas 800 jardas o _maximum_ de velocidade, proseguiu Barbicane, que se tem podido obter até hoje? --É verdade, respondeu Morgan. --Todavia, replicou Maston, sempre devo dizer, que, se o meu morteiro não tivera rebentado... --Pois sim, mas rebentou, redarguiu Barbicane, acompanhando a resposta com um gesto amigavel. Tomemos pois por ponto de partida a velocidade de 800 jardas. Ha de ser necessario vintuplica-la, e n'estes termos, guardando para outra sessão o estudo dos meios proprios para produzir tal velocidade, chamarei a vossa attenção, caros collegas, para as dimensões que convem dar á bala. Bem deveis imaginar que no caso presente não tratâmos de projectis que pesem quando muito meia tonelada. --E porque? perguntou o major? --Porque a bala que estamos discutindo, respondeu promptamente J.-T. Maston, deve ser bastantemente volumosa para solicitar a attenção dos habitantes da Lua, se é que lá os ha. --É verdade, redarguiu Barbicane, e tambem por outra rasão ainda mais importante. --E qual é ella, Barbicane ? perguntou o major. --É que não me parece bastante mandar um projectil á Lua, e ficar só n'isso; julgo necessario que o acompanhemos durante a viagem e até ao momento de bater no alvo. --O que! disseram a um tempo. O general e o major, um tanto surprehendidos com a proposta. --Certamente, continuou Barbicane, como quem está conscio do que diz, de certo, e senão a nossa experiencia não produziria resultado algum. --Mas n'esse caso, replicou o major, haveis de dar ao projectil dimensões enormes? --Nada. Ora tende a bondade de ouvir-me. Sabeis todos que os instrumentos de optica têem alcançado um elevado grau de perfeição; com certos telescopios tem-se conseguido obter augmentos de seis mil por um e trazer assim a Lua á distancia proximamente de 40 milhas (16 leguas). Ora a esta distancia são distinctamente visiveis os objectos que têem 60 pés de lado. E se não se tem levado mais longe o poder de augmento dos telescopios é que a amplificação cresce na rasão inversa da clareza, e porque a Lua, que não é senão um espelho de reflexão, não emitte luz bastante intensa para que possa admittir amplificações que vão alem do limite que indiquei. --E então! que fazer? perguntou o general. Haveis de dar ao vosso projectil 60 pés de diametro? --Certamente que não! --Tereis então de tornar a Lua mais luminosa? --Justamente. --Isso lá me parece muito! exclamou J.-T. Maston. --É muito é verdade, mas muito simples, respondeu Barbicane. Com effeito se eu conseguir que diminua a espessura da atmosphera que a luz da Lua atravessa, acaso não terei tornado essa luz mais intensa! --Evidentemente. --Pois bem! Para obter tal resultado bastar-me-ha estabelecer um telescopio em alguma montanha elevada. E é o que havemos de fazer. --Basta, rendo-me, respondeu o major. Tendes uma tal maneira de simplificar as cousas! --E que amplificação esperaes obter por tal expediente? --Uma amplificação de quarenta e oito mil por um, que ha de trazer-nos a Lua a cinco milhas de distancia. N'esta hypothese bastará que qualquer objecto tenha nove pés de lado para que seja perfeitamente visivel. --Perfeitamente! exclamou J.-T. Maston, o nosso projectil ha de portanto ter nove pés de diametro? --Nem mais nem menos. --Todavia, permittam-me que lhes diga, redarguiu o major Elphiston, que ainda assim o projectil ha de ter um peso tal que... --Oh! major, respondeu Barbicane, antes que discutamos o peso do projectil consenti que vos diga que nossos paes faziam n'este genero cousas realmente maravilhosas. Longe de mim a idéa de affirmar que a balistica não tem progredido, mas bom é que se saiba que já na idade media se obtinham resultados surprehendentes; ousarei até acrescentar, mais para surprehender que os que nós hoje alcançâmos. --Ora essa! replicou Morgan. --Justificae o que affirmaes, exclamou com vehemencia J.-T. Maston. --Nada mais facil, respondeu Barbicane; sobram-me os exemplos para apoiar o que asseverei. Assim, no assedio de Constantinopla por Mahomet II, em 1543, lançaram-se balas de pedra que pesavam mil e novecentas libras, e que deviam ser de bonito tamanho. --Oh! oh! disse o major, mil e novecentas libras, é já um algarismo elevado! --Em Malta, no tempo dos cavalleiros, um certo canhão do forte de Sant'Elmo arremessava projectis que pesavam duas mil e quinhentas libras. --Parece impossivel! --Finalmente, segundo diz um historiador francez, no reinado de Luiz XI, havia um morteiro que lançava bombas do peso sómente de quinhentas libras; em compensação estas bombas, partindo da Bastilha, logar onde os loucos encarceravam os de espirito são, iam cahir em Charenton, logar onde os de espirito são encarceravam os loucos. --Muito bem! disse J.-T. Maston. --E depois do que acabo de relatar, em summa, que temos visto? Os canhões de Armstrong que arremessam balas de quinhentas libras, e as Columbiadas Rodman projectis de meia tonelada! O que parece, portanto, é que se os projectis ganharam em velocidade, perderam pelo menos em peso. Se dirigirmos pois n'este sentido os nossos esforços, havemos de conseguir, com o auxilio dos progressos da sciencia decuplicar o peso das balas de Mahomet II e dos cavalleiros de Malta. --Evidente, respondeu o major, mas que metal pensaes em empregar para compor o projectil. --Ferro fundido, nada mais, disse o general Morgan. --Ora! ferro fundido! exclamou J.-T. Maston com profundo desdem, é cousa bem ordinaria para fabricar uma bala destinada a ir á Lua. --Nada de exagerações, honrado amigo, respondeu Morgan; ferro é quanto basta. --E então! replicou o major Elphiston; olhem que sendo o peso da bala proporcional ao seu volume, uma bala de ferro fundido que tenha nove pés de diametro ha de ainda ter um tal peso que mette medo! --Assim será, se for massiça, mas não se for oca, disse Barbicane. --Oca! então é um obuz? --Onde podem metter-se correspondencias, replicou J.-T. Maston, e amostras das producções terrestres! --Sim, um obuz, respondeu Barbicane, assim é absolutamente necessario; uma bala massiça de cento e oito pollegadas pesaria mais de duzentas mil libras, peso evidentemente excessivo; todavia como julgo necessario guardar as condições de estabilidade na construcção do projectil, proponho que se lhe dê o peso de cinco mil libras. --Qual ha de ser então a grossura das paredes? perguntou o major. --Se nos cingirmos á proporção indicada nos regulamentos, continuou Morgan, ao diametro de cento e oito pollegadas correspondem paredes de dois pés de espessura, pelo menos. --Seriam grossas de mais, respondeu Barbicane; notem bem, que se não trata aqui de uma bala fabricada para furar couraças; basta que a bala tenha paredes sufficientemente fortes para resistir á pressão dos gazes da polvora. O problema portanto é este: qual é a espessura que deve ter um obuz de ferro fundido para que não pese mais de vinte mil libras? O nosso habil calculador e bom amigo Maston no-lo dirá sem demora. --Muito facilmente, replicou o honrado secretario da commissão. E quando tal dizia ia já traçando no papel algumas formulas algebricas; viram-se-lhe sair dos bicos da pena [Grego: p] e _x_ elevados ao quadrado. Pareceu até que, sem lhe pôr a mão, extrahia, uma certa raiz cubica, e disse: «As paredes hão de ter apenas duas pollegadas de grossura.» --E será bastante? perguntou o major, com ares de quem duvida. --Não, respondeu o presidente Barbicane, é claro que não. --E então! que se ha de fazer? continuou Elphiston com ares de grande irresolução. --Servir-se de outro metal e não do ferro fundido. --Do cobre? disse Morgan. --Nada, o cobre ainda é pesado demais, e tenho para vos propor cousa melhor. --Então que é? disse o major. --O aluminium, respondeu Barbicane. --Aluminium! exclamaram os tres collegas do presidente. --Certamente amigos meus. Sabeis que um illustre chimico francez, Henry-Sainte-Claire-Deville, conseguiu em 1854 obter o aluminium em massa compacta. Ora este precioso metal tem a brancura da prata, a inalterabilidade do oiro, a tenacidade do ferro, a fusibilidade do cobre e é leve como vidro; modela-se com facilidade, está espalhado com profusão na natureza, visto como a alumina é base da maior parte das rochas, é tres vezes mais leve que o ferro, e parece ter sido expressamente creado para fornecer-nos materia para o nosso projectil. --Hurrah pelo aluminium! exclamou o secretario da commissão, sempre extremamente ruidoso nos momentos de enthusiasmo. --Mas, caro presidente, disse o major, não será extremamente elevado o preço do aluminium? --Assim era, respondeu Barbicane; nos primeiros tempos depois que foi descoberto, custava a libra do aluminium entre duzentos e sessenta e duzentos e oitenta dollars (approximadamente 1.500 francos[36]); depois desceu a vinte e sete dollars (150 francos), e hoje finalmente, está a nove dollars (48 francos e 75 centesimos). --Mas a nove dollars por libra, replicou o major, que não cedia á primeira, vem a dar ainda um preço enorme! --Sem duvida, caro major, mas não inaccessivel. --E, n'esse caso, qual ha de ser o peso do projectil? perguntou Morgan. --O resultado dos meus calculos é o seguinte, respondeu Barbicane: uma bala de cento e oito pollegadas de diametro e de doze pollegadas de espessura[37], pesaria, no caso de ser de ferro fundido, sessenta e sete mil quatrocentas e quarenta libras; sendo de aluminium fundido, o seu peso ficará reduzido a dezanove mil duzentas e cincoenta libras. --Muito bem! exclamou Maston, isso agora já cabe no nosso programma. --Muito bem! Muito bem! Mas acaso ignoraes, que a dezoito dollars por libra, esse projectil havia de custar-nos... --Cento e setenta e tres mil duzentos e cincoenta dollars (928:437 francos e 50 centesimos), sei-o muito bem; mas não se assustem amigos, não ha de faltar dinheiro para a realisação do nosso projecto; por isso respondo eu. --Ha de chover dinheiro nos nossos cofres, replicou J.-T. Maston. --Então! que me dizem ao aluminium! perguntou o presidente. --Está adoptado, responderam os tres membros da commissão. --Quanto á fórma da bala, proseguiu Barbicane, pouca importancia tem, visto como, logo que o projectil passe para alem da atmosphera, ha de achar-se no vacuo, proponho portanto, que seja redonda, para que gire sobre si mesmo, se o julgar conveniente, ou se porte como melhor lhe ditar a phantasia. Foi este o fecho da primeira sessão da commissão; ficou definitivamente resolvida a questão do projectil, e J.-T. Maston exultou com a idéa de mandar aos Selenitas uma Bala de aluminium «que havia dar-lhes a entender que os habitantes cá da Terra eram uns pimpões!» CAPITULO VIII HISTORIA DO CANHÃO As resoluções tomadas na primeira sessão produziram grandissimo effeito no publico. Algum mais timorato lá se assustava com a idéa da bala que havia de pesar vinte mil libras. Punha-se em duvida se poderia construir-se canhão capaz de transmittir velocidade inicial bastante a uma massa d'aquella ordem. A acta da segunda sessão da commissão devia responder triumphantemente a todas aquellas duvidas. No dia seguinte ao cair da noite abancaram em volta da mesa os quatro membros do Gun-Club defrontando com novas montanhas de sandwiches que marginavam um verdadeiro oceano de chá. Atou-se o fio á discussão, e d'esta vez sem preambulo. «Caros collegas, disse Barbicane, vamos occupar-nos do machinismo que ha a construir, estudando-lhe o comprimento, a fórma, a composição e o peso. É provavel que havemos de concluir dando-lhe dimensões gigantescas; mas, por maiores que sejam as difficuldades, o engenho industrial dos americanos ha de vence-las com facilidade. Queiram portanto ouvir-me, e não me poupem, venham objecções á queima roupa, que as não temo!» Estas palavras foram recebidas com um grunhido de approvação. «Não esqueçamos, proseguiu Barbicane, a altura a que fomos levados hontem pela discussão: apresenta-se-nos agora o problema nos seguintes termos: imprimir a um obuz de cento e oito pollegadas de diametro, e que pesa vinte mil libras a velocidade inicial de doze mil jardas por segundo. Com effeito, é exactamente esse o problema, respondeu o major Elphiston. Prosigamos, tornou Barbicane. Que factos se passam, quando um projectil é arremessado ao espaço? Tres forças independentes o solicitam, a resistencia do meio, a attracção da Terra, e a força de impulsão que lhe imprimiram. Examinemos estas tres forças. A resistencia do meio, que aqui é a resistencia do ar, ha de ser de pouca importancia; porque a atmosphera terrestre não tem mais de quarenta milhas (16 leguas proximamente) de altura. Ora, com a rapidez de doze mil jardas, o projectil ha de atravessa-la em cinco segundos, tempo bastantemente curto para que a resistencia do meio possa ser considerada insignificante. Passemos á attracção da Terra, ou o que vale o mesmo á acção da gravidade sobre o obuz. Sabemos que o peso d'este ha de decrescer na rasão inversa do quadrado das distancias. Effectivamente ensina-nos a physica o seguinte: quando um corpo abandonado a si proprio cáe á superfície da Terra, desce quinze pés[38], e se o mesmo corpo fosse transportado para a distancia de duzentos e cincoenta e sete mil quinhentas e quarenta e duas milhas, ou o que é mesmo, á distancia a que está a Lua, o seu descenso ficaria reduzido a meia linha, proximamente, no primeiro segundo. Quasi que é a immobilidade. Trata-se portanto de vencer progressivamente a acção da gravidade. E como havemos de consegui-lo? Pela força de impulsão. --Ahi é que está a difficuldade, respondeu o major. --Ahi está, na verdade, continuou o presidente, mas havemos de supera-la, porque a força de impulsão de que havemos mister ha de resultar do comprimento do machinismo e da quantidade de polvora que empregarmos, e a verdade é que esta não tem mais limitação do que a resistencia d'aquelle. Tratemos pois hoje das dimensões que havemos de dar ao canhão. Bem entendido está que podemos estabelece-lo em condições de resistencia, por assim dizer, infinita, visto como com tal canhão não ha a fazer manobras. --Tudo isso é evidente, respondeu o general. --Até agora, disse Barbicane, os canhões de maior comprimento, as nossas enormes Columbiadas, nunca excederam o comprimento de vinte e cinco pés, e portanto a muita gente hão de causar espanto as dimensões que havemos de ser forçados a adoptar. --Eh! indubitavelmente, exclamou J.-T. Maston; pela minha parte não me contento com menos de meia milha de comprimento, para o canhão! --Meia milha! exclamaram o major e o general. --Meia milha sim! e talvez devesse dizer o dobro. --Ora vamos, Maston, isso é exageração. --Certamente que não, replicou o effervescente secretario, nem percebo, na realidade, por que me accusaes de exagero. --Porque ides longe de mais! --Sabei, senhor, respondeu J.-T. Maston, assumindo os seus mais imponentes ademanes, sabei que o artilheiro é como a bala, que nunca vae longe de mais! Ía a discussão tomando caracter de personalidade, mas o presidente interveiu. --Soceguem, amigos, e raciocinemos; evidentemente ha de ser necessario um canhão de grande tamanho, visto como o comprimento da peça ha de augmentar a força expulsiva dos gazes accumulados sob o projectil; mas é inutil ir alem de certos limites. --Muito bem, disse o major. --Quaes são as regras applicaveis ao caso? De ordinario o comprimento do canhão é igual a vinte até vinte e cinco vezes o diametro da bala, e pesa o canhão duzentas e trinta e cinco a duzentos e quarenta vezes o peso d'esta. --Não é bastante, clamou impetuoso, J.-T. Maston. --Convenho n'isso, meu digno amigo, e, na realidade, se nos cingirmos á proporção apontada, para um projectil de 9 pés de largura e de 30:000 libras de peso, não terá o machinismo mais do que 225 pés de comprimento e de 7.200:000 libras de peso. --É ridiculo, redarguiu J.-T. Maston. Tanto vale usar de uma pistola! --Tambem penso assim, respondeu Barbicane, e é por isso que tenho tenção de quadruplicar esse comprimento, e de construir um canhão de 900 pés de comprido. O general e o major apresentaram algumas objecções, entretanto a proposta sustentada com animação pelo secretario do Gun-Club foi a final definitivamente adoptada. «Decidido este ponto, disse Elphiston, que espessura havemos de dar ás paredes? --Seis pés, respondeu Barbicane. --De certo que não imaginaes collocar uma massa d'essa ordem em cima de um reparo? perguntou o major. --Isso é que havia de ser soberbo! disse J.-T. Maston. --Mas impraticavel, respondeu Barbicane. Nada, penso que o machinismo deve ser moldado mesmo no solo, guarnecido de arcos de ferro forjado, e apertado n'uma obra bem espessa e solida de pedra e cal, por forma que adquira toda a resistencia do terreno circumdante. Depois de fundida a peça ha de se lhe brocar, calibrar e polir a alma com extremo cuidado, para evitar que exista o vento[39] da bala. [Figura: Vista ideal do canhão de J.-T. Maston (pag. 70).] Por esta fórma não ha de haver perda alguma de gazes e a força expansiva da polvora transformar-se-ha toda em impulsão. [Figura: O monge Schwartz inventando a polvora (pag. 77).] --Hurrah! hurrah! clamou J.-T. Maston, já temos canhão. --Ainda não! respondeu Barbicane, acalmando com o gesto a impaciencia do amigo. --E porque não? --Porque ainda lhe não discutimos a fórma. Ha de ser canhão, obuz ou morteiro? --Canhão, replicou Morgan. --Obuz, redarguiu o major. --Morteiro, clamou J.-T. Maston. Nova e vehemente discussão ia encetar-se; cada qual preconisava já a sua arma favorita, quando o presidente a interrompeu de prompto, dizendo: «Meus amigos, vou pô-los a todos de accordo; a nossa columbiada ha de ter alguma cousa de cada uma das tres bôcas de fogo indicadas. Ha de ser canhão, por ter a camara da polvora de diametro igual ao da alma. Obuz, porque ha de arremessar obuzes. Finalmente será morteiro, visto como ha de ser apontada por um angulo de 90^o, e que, sem poder recuar, inabalavelmente ligada ao solo, communicará ao projectil toda a potencia de impulsão que se lhe accumular no ventre. --Adoptado, adoptado, conclamaram os membros da commissão. --Permittam-me uma simples reflexão, disse Elphiston, ha de ser raiado esse canh-obuz-morteiro? --Não, respondeu Barbicane, não; precisâmos de uma enorme velocidade inicial, e sabeis muito bem que as balas sáem menos velozes dos canhões raiados do que dos canhões de alma lisa. --É exacto. --Até que emfim d'esta vez é que já temos canhão! repetiu J.-T. Maston. --Ainda não é tanto assim, replicou o presidente. --Então porque? --Porque ainda não sabemos de que metal ha de ser feito. --Decida-se isso sem demora. --Era o que eu ia propor-vos». Cada um dos membros da commissão foi engulindo a sua duzia de sandwiches acompanhadas de um bule de chá, depois recomeçou a discussão. «Meus bons collegas, disse Barbicane, o nosso canhão deve ter grande tenacidade e grande dureza, e ser infusivel pelo calor, insoluvel e inoxydavel pela acção corrosiva dos acidos. --Isso não tem duvida alguma, respondeu o major, e como ha de ser necessario empregar uma quantidade consideravel de metal, não havemos de hesitar muito na escolha. N'esse caso, disse Morgan, proponho para a fabricação da columbiada a melhor das ligas que é conhecida até hoje, isto é, cem partes de cobre, doze de estanho e seis de latão. --Meus amigos, respondeu o presidente, confesso que esta composição tem dado excellentes resultados; mas para o nosso caso, custaria excessivamente cara, e difficilmente poderiamos emprega-la. Cuido portanto que devemos adoptar uma materia excellente, e de baixo preço, tal como o ferro fundido. Não será esta a vossa opinião, major? --Exactamente, respondeu Elphiston. --Com effeito, proseguiu Barbicane, o ferro fundido, custa dez vezes mais barato que o bronze, é de facil fusão, molda-se com simplicidade em moldes de areia, manipula-se com rapidez; dá pois simultaneamente economia de tempo e de dinheiro. Alem d'isto esta materia é excellente, e bem me recordo de que, durante a guerra, no cêrco de Atlanta, algumas peças de ferro fundido atiraram cada uma mil tiros de vinte em vinte minutos, sem que por isso soffressem alteração. --Todavia, o ferro fundido é muito quebradiço, respondeu Morgan. --É verdade, mas tambem é muito resistente, e de mais asseguro-vos que não havemos de rebentar, por isso respondo eu. --Rebentar não é deshonra, replicou em ar de sentença J.-T. Maston. --Está claro, respondeu Barbicane. Pedirei portanto ao nosso digno secretario que nos calcule o peso de um canhão de ferro fundido, de novecentos pés de comprimento e com um diametro interior de nove pés, e com as paredes de seis pés de espessura. --N'um instante, respondeu J.-T. Maston. E, assim como fizera na vespera, escrevinhou umas formulas, com facilidade de pasmar, e disse passado um minuto. «Esse canhão ha de pesar sessenta e oito mil e quarenta toneladas (68.040:000 kilogrammas).» --E a dois centesimos[40] (10 centimos) por libra, ha de custar?... --Dois milhões quinhentos e dez mil setecentos e um dollars (13.608:000 francos).» J.-T. Maston, o major e o general olharam para Barbicane com ar de inquietação. «E então! Repito-lhes, senhores, o que já lhes disse hontem, estejam descansados, que os milhões não nos hão de faltar.» Seguros na palavra do seu presidente, separaram-se os membros da commissão, depois de terem combinado para o dia seguinte a terceira sessão. CAPITULO IX QUESTÃO DA POLVORA Só faltava tratar da questão da polvora. Esperava o publico com anciedade esta decisão final. Dados o volume do projectil e o comprimento do canhão, qual seria a quantidade de polvora necessaria para produzir a impulsão? Aquelle agente temivel, de que o homem, todavia conseguiu dominar e dirigir os effeitos, ia ser chamado a desempenhar o seu papel habitual, mas em proporções nunca usadas. É geralmente acreditado, e diz-se vulgarmente, que a polvora foi inventada no seculo XIV, pelo monge Schwartz, que pagou com a vida a grande descoberta que fizera. Mas na actualidade quasi que se póde dar como provado que esta historia merece ser classificada a par de muitas outras lendas da idade media. A polvora ninguem a inventou, deriva directamente dos fogos gregos, como ella compostos de enxofre e de salitre. A differença é que os mixtos que em tempos remotos davam apenas polvora de foguete transformaram-se, com o decorrer dos tempos, em mixtos detonantes ou polvoras de tiro. Porém se os eruditos conhecem perfeitamente a imaginaria historia da invenção da polvora, pouca gente ha que saiba devidamente apreciar a sua potencia mechanica, que é exactamente o que é necessario saber para comprehender a importancia do assumpto sujeito á commissão. Um litro de polvora pesa, proximamente, duas libras (900 grammas)[41], e produz quando se inflamma quatrocentos litros de gazes; estes gazes, em liberdade, e sob a acção de uma temperatura elevada até dois mil e quatrocentos graus, occupam um espaço equivalente a quatro mil litros. Portanto o volume da polvora em grão está para o volume dos gazes produzidos pela sua deflagração, assim como um está para quatro mil. Avalie-se por isto a espantosa impulsão que hão de produzir estes gazes, quando comprimidos n'um espaço quatro mil vezes mais apertado do que o que naturalmente haviam de occupar. Isto tudo sabiam, e perfeitamente, os membros da commissão quando no dia seguinte abriram a sessão. Barbicane concedeu a palavra ao major Elphiston, que tinha sido director das fabricas de polvora no tempo da guerra. «Caros camaradas, disse aquelle notavel chimico, vou começar pela citação de algarismos irrecusaveis que hão de ser a base dos nossos calculos. A bala de vinte e quatro, de que em termos tão poeticos nos fallou antes de hontem o honrado J.-T. Maston, é expellida da bôca de fogo apenas por dezeseis libras de polvora. --Estaes seguro d'esse algarismo? Perguntou Barbicane. --Absolutamente seguro, respondeu o major. O canhão Armstrong carrega-se só com setenta e cinco libras de polvora para um projectil de oitocentas libras de peso, e a columbiada de Rodman não gasta mais de sessenta libras de polvora para arremessar a seis milhas de distancia a sua bala de meia tonelada. São factos que não podem ter contestação, porque eu proprio tomei nota d'elles nas actas da commissão de artilheria. --Muito bem, respondeu o general. --Ora pois! proseguiu o major, a consequencia que devemos tirar d'estes dados é a seguinte: que a quantidade de polvora não augmenta na proporção do peso da bala; e, na verdade, são necessarias dezeseis libras de polvora para uma bala de vinte e quatro; por outras palavras, gastam-se nos canhões ordinarios quantidades de polvora que pesam um terço do peso da bala, mas a proporcionalidade não é constante. Se fizessemos o calculo, haviamos de reconhecer que para a bala de meia tonelada, o peso da polvora necessaria, que se reduz a sessenta libras apenas, seria, segundo a proporção, de trezentas e trinta e tres libras. --E a que conclusão quereis por ahi chegar? Perguntou o presidente. Levando essa theoria até aos seus ultimos limites, meu caro major, disse J.-T. Maston, haveis de chegar á seguinte conclusão final: que, se póde dispensar a polvora, toda a vez que a bala exceda um certo peso. --O nosso Maston é sempre faceto, mesmo quando se trata de cousas serias, mas esteja descansado que lhe hei de propor quantidades de polvora, capazes de lisonjear o seu amor proprio de artilheiro. O que eu pretendo que fique claramente estabelecido, é que, no tempo da guerra, o peso da polvora foi, por experiencia, reduzido para os maiores canhões á decima parte do peso da bala. --Nada ha mais verdadeiro, disse Morgan. Lembro entretanto, que será conveniente que accordemos ácerca da natureza da polvora, antes de decidir qual é a quantidade d'ella necessaria para a impulsão calculada. --Havemos de usar da polvora bombardeira, respondeu o major, porque a combustão total d'esta é mais rapida que a da polvora miuda. --É verdade, replicou Morgan, mas é muito quebradiça, e no fim de tempos vem a deteriorar a alma das peças. --Ora! isso poderia ser um inconveniente para qualquer canhão destinado a fazer longos serviços, mas para a nossa columbiada não. Perigo de explosão não temos nós que temer, o que é essencial é que a polvora se inflamme instantaneamente, para que o seu effeito mechanico seja completo. --Talvez se podesse abrir na peça mais de um ouvido, disse J.-T. Maston, e assim dar fogo em muitos pontos simultaneamente. --Pois sim, respondeu Elphiston, mas isso iria difficultar a manobra. Insisto portanto na minha bombardeira, que evita essas difficuldades. --Vá, respondeu o general. [Figura: O capitão Nicholl (pag. 78).] --Rodman, proseguiu o major, usava para carregar a sua columbiada de uma polvora, cujos grãos eram do tamanho de uma castanha, e fabricada com carvão de salgueiro mal torrado em caldeiras de ferro fundido. Esta polvora era dura e luzidia, e incendiando-se na mão não deixava vestigios; continha hydrogenio e oxygenio em grandes proporções, ardia instantaneamente, e, apesar de ser muito quebradiça, não deteriorava sensivelmente as bôcas de fogo. [Figura: Nicholl publicou grande numero do cartas (pag. 91).] --Em vista d'isso, respondeu J.-T. Maston, parece-me que não ha que hesitar, e que a escolha está de per si feita. --A não ser que deis preferencia ao oiro _pulverisado_, replicou rindo, o major, riso que o susceptivel secretario pagou com um gesto ameaçador do seu gancho. Barbicane conservára-se até aquelle momento estranho á discussão. Deixava fallar e ouvia. Era evidente que tinha o juizo formado ácerca do assumpto. Por isso limitou-se a dizer o seguinte: «Em conclusão, meus amigos, que quantidade de polvora, reputaes necessaria?» Entre-olharam-se por um momento os tres socios do Gun-Club. «Duzentas mil libras, disse por fim Morgan. --Quinhentas mil, replicou o major. --Oitocentas mil!» exclamou J.-T. Maston. D'esta vez não se atreveu Elphiston a alcunhar o collega de exagerado. E com rasão, que se tratava de arremessar á Lua um projectil de vinte mil libras de peso, e de communicar a este uma força inicial de doze mil jardas por segundo. Seguiu-se portanto um momento de silencio á triplice proposta feita pelos tres collegas. Quebrou-o finalmente o presidente Barbicane. «Estimaveis camaradas, disse este com voz placida, parto eu do principio, que a resistencia do nosso canhão, construido nas condições requeridas, é illimitada. Portanto vou causar surpreza ao honrado J.-T. Maston, affirmando-lhe que ainda foi timido nos seus calculos, e proponho que sejam duplicadas as oitocentas mil libras de polvora em que fallou. --Um milhão e seiscentas mil libras? disse J.-T. Maston, dando um salto na cadeira. --Nada menos. --Mas, n'esse caso, voltâmos ao meu canhão de meia milha de comprimento. --É claro, disse o major. --Um milhão e seiscentas mil libras de polvora, continuou o secretario da commissão, hão de occupar um espaço igual a vinte e dois mil pés cubicos[42] approximadamente; e como o canhão em que accordastes tem um volume interno apenas igual a cincoenta e quatro mil pés cubicos[43], ha de ficar cheio até quasi ao meio, sendo por esta forma a alma pequena, para que a força expulsiva dos gazes imprima ao projectil impulsão bastante. Isto não tinha replica. O que J.-T. Maston dizia era a pura verdade. Voltaram-se todos para Barbicane. «Apesar de tudo, tornou o presidente, insisto na quantidade de polvora que indiquei. Reflecti que um milhão e seiscentas mil libras de polvora hão de transformar-se em seis milhares de milhões de litros de gazes. Ouviram bem? Seis milhares de milhões! --Mas então o que se ha de fazer? perguntou o general. --É muito facil; havemos de reduzir o volume d'esta enorme quantidade de polvora, sem lhe diminuir por fórma alguma a potencia mechanica. --Bem! Mas por que meio? --É o que vou dizer-vos, respondeu sem nenhum entono Barbicane. Os interlocutores devoravam-n'o com o olhar. «Com effeito, continuou elle, nada é mais facil do que reduzir essa massa de polvora a um volume quatro vezes menor. Todos tendes conhecimento d'essa curiosa substancia que constitue os tecidos elementares dos vegetaes e que se chama cellulose. --Ah! interrompeu o major. Começo a comprehender, meu caro Barbicane. --Essa substancia, disse o presidente, extrahe-se no estado de perfeita pureza de diversos corpos, e principalmente do algodão, que não é senão a penugem das sementes do algodoeiro. Ora o algodão, combinado a frio com o acido azotico, transforma-se em uma substancia eminentemente insoluvel, eminentemente combustivel e eminentemente explosiva. Descobriu esta substancia ha já annos, em 1832, o chimico francez Braconnot, e poz-lhe o nome de xyloidina. Em 1838 outro francez, Pelouze, estudou-lhe as differentes propriedades; e finalmente em 1846, Shonbein, professor de chimica em Bâle, propo-la para polvora de guerra. Esta polvora é o algodão azotico. --Ou pyroxylo, respondeu Elphiston. --Ou algodão-polvora, respondeu Morgan. --Pois não haverá um nome de americano que se possa escrever ao lado d'essa descoberta? exclamou J.-T. Maston, movido por vivo sentimento de amor proprio nacional. --Infelizmente nem um só, respondeu o major. --Apesar d'isso, continuou o presidente, por dar prazer a Maston, sempre lhe direi que póde estabelecer-se proxima relação entre os trabalhos de um nosso concidadão e o estudo da cellulose; porque o collodion, que é um dos agentes principaes da photographia, não é senão pyroxylo dissolvido em ether misturado com alcool, e o collodion foi descoberto por Maynard, que era então estudante de medicina em Boston[44]. --Pois então, hurrah! por Maynard e pelo algodão-polvora! exclamou o ruidoso secretario do Gun-Club. --Voltemos ao pyroxylo, proseguiu Barbicane. Conheceis-lhe já as propriedades que no-lo vão tornar precioso: prepara-se com extrema facilidade: é mergulhar algodão no acido azotico fumegante durante quinze minutos, lava-lo depois em grande quantidade de agua, secca-lo e nada mais. --É na realidade extremamente simples, disse Morgan. --Alem d'isto o pyroxylo é inalteravel pela humidade, qualidade que devemos reputar preciosa, visto como hão de ser necessarios muitos dias para carregar o nosso canhão; é inflammavel a cento e setenta graus centigrados, em vez de duzentos e quarenta, e arde tão subitamente, que póde ser queimado em cima de polvora vulgar, sem que esta tenha tempo de inflammar-se. --Perfeitamente, respondeu o major. --Tem só um inconveniente: é caro. --Isso que importa? interrompeu J.-T. Maston. --Em conclusão; communica aos projectis velocidade quatro vezes maior que a da polvora. Acrescentarei ainda que, misturado com oito decimos do seu peso de nitrato de potassa, lhe augmenta a potencia explosiva em proporção notavel. --E será necessario faze-lo? perguntou o major. --Creio que não, respondeu Barbicane. Em conclusão, em vez de um milhão e seiscentas mil libras de polvora, teremos apenas quatrocentas mil libras de algodão-polvora, e como se podem comprimir sem perigo, em vinte e sete pés cubicos, quinhentas libras de algodão azotico, esta substancia vem a encher a nossa columbiada sómente até á altura de trinta toezas. Por esta maneira terá a bala a percorrer mais de setecentos pés de alma do canhão, sob a acção do esforço de seis milhares de milhões de litros de gazes antes de voar em liberdade para o astro das noites.» Ao ouvir o final d'este periodo não pôde, de commovido, conter-se J.-T. Maston; lançou-se nos braços do amigo com vehemencia de projectil; mettia-lhe as costellas dentro, se a solida construcção de Barbicane não estivera á prova de bomba. Terminou com este incidente a terceira sessão da commissão. Barbicane e os seus audazes collegas, a quem nada parecia impossivel, tinham acabado de resolver o problema tão complexo do projectil, do canhão e das polvoras. Elaborado o plano, restava a execução. «Insignificantes pormenores, bagatella», lhe chamava J.-T. Maston. CAPITULO X UM INIMIGO POR VINTE E CINCO MILHÕES DE AMIGOS O publico americano encontrava poderosos incentivos de curiosidade até nos mais insignificantes pormenores do emprehendimento do Gun-Club, e seguia passo a passo as discussões da commissão. Os preparativos mais simples para aquella grande experiencia, as questões de algarismos que d'ella nasciam, as difficuldades mechanicas que havia a resolver, n'uma palavra a sua _mise en train_ eram o que preoccupava em grau elevadissimo a opinião. Mais de um anno havia de decorrer ainda entre o começo e o termo final dos trabalhos preparatorios; mas este intervallo de tempo não havia de ser esteril em emoções; a escolha de logares para a perfuração, a construcção do molde, a fundição da columbiada e o perigosissimo carregamento d'ella, tudo era mais que sufficiente para excitar a curiosidade publica. O projectil, apenas expellido, havia de escapar em poucos decimos de segundo ao alcance da vista; depois para poucos privilegiados era verem com os proprios olhos o que lhe havia de succeder, como se haveria através do espaço, e por que fórma havia de alcançar a Lua. Por este motivo é que os preparativos para a experiencia e os exactos pormenores da execução eram, para a maioria, a parte verdadeiramente interessante d'ella. E todavia o attractivo puramente scientifico do emprehendimento recebeu de um subito incidente novo incitamento. Já dissemos de quão numerosas legiões de admiradores e amigos tinha o projecto Barbicane trazido a adhesão ao seu auctor, e comtudo por mais honrosa e extraordinaria que fosse, aquella maioria não tinha de ter unanimidade. Um só homem, um só em todos os Estados da União, lavrou protesto contra a tentativa do Gun-Club, que atacou com violencia sempre que se lhe proporcionou para isso occasião; e, tal é a natureza humana, que para Barbicane valeu mais aquella opposição de um só do que os applausos de todos os outros. Apesar de que Barbicane bem conhecia quaes os motivos de tal antipathia, e d'onde vinha aquella solitaria inimizade, que era pessoal e de antiga data, e finalmente em que rivalidades de amor proprio creára raizes. Aquelle perseverante inimigo, nunca o presidente do Gun-Club o tinha visto. E felizmente, porque o encontro d'aquelles dois homens havia por certo de trazer consequencias funestas. Aquelle rival era, como Barbicane, um homem de sciencia, natureza altiva, audaz, convicta e violenta, um yankee puro. Chamavam-lhe o capitão Nicholl, e habitava em Philadelphia. Ninguem desconhece a curiosa luta que durante a guerra federal se travou entre o projectil e a couraça dos navios blindados; aquelle tinha por fito especial varar esta; esta obstinava-se decididamente a não se deixar varar. D'este facto proveio uma transformação de raiz na marinha dos differentes estados dos dois continentes. Bala e couraça lutaram com obstinação nunca vista; crescia o volume de uma, augmentava logo a espessura da outra, e em constante proporção. Os navios marchavam para o fogo armados de peças formidaveis e abrigados por invulneravel concha. Os _Merrimac_, os _Monitor_, os _Ram-Tenesse_, os _Weckausen_[45] arremessavam enormes projectis, depois de encouraçados contra os projectis alheios. Faziam a outrem o que não queriam que lhes fizessem, que é o principio immoral sobre que assenta toda a arte da guerra. Ora se Barbicane fôra notavel fundidor de projectis, Nicholl não lhe ficára a dever nada como forjador de chapas para couraças. Fundia um de noite e de dia em Baltimore, forjava o outro de dia e de noite em Philadelphia. Cada um d'elles seguia ordem de idéas diametralmente oppostas. Barbicane a inventar nova bala, e Nicholl a inventar nova couraça. Passava o presidente do Gun-Club a vida a abrir buracos, e o capitão gastava os dias da existência a impedir-lh'o. D'aqui nasceu uma rivalidade de todos os instantes, que dos factos foi passando ás pessoas. Apparecia Nicholl a Barbicane em sonhos sob fórma de impenetravel couraça de encontro á qual se ia fazer pedaços, Barbicane apparecia nas visões nocturnas de Nicholl qual projectil que o varava de lado a lado. E comtudo, apesar de caminharem por linhas divergentes, estes homens tinham de encontrar-se um dia, apesar de todos os axiomas da sciencia geometrica; mas havia de ser no terreno do duello. Muito felizmente para cidadãos tão uteis ao seu paiz, separavam-nos boas cincoenta ou sessenta milhas, e os amigos de ambos semearam-lhe o caminho de taes e tantos obstaculos, que nunca conseguiram encontrar-se. Lá qual dos dois inventores levava a palma ao outro, é que ninguem sabia ao certo: os resultados obtidos tornavam difficil apreciar com justiça. No fim de contas, o que mais plausivel parecia, é que a couraça havia de ser a primeira a ceder á bala, e todavia para os competentes ainda era caso de duvida. Por occasião das ultimas experiencias feitas, os projectis cylindro-conicos de Barbicane tinham ido espetar-se como alfinetes nas couraças de Nicholl; n'esse dia reputou-se o forjador de chapas de couraça de Philadelphia plenamente victorioso, e o mais profundo desprezo pareceu-lhe ainda sentimento demasiadamente elevado para pagar os merecimentos do seu rival; mas quando este, algum tempo depois, substituiu por simples obuzes de seiscentas libras as balas conicas, teve o capitão que descer do alto pedestal das suas pretensões. E na realidade estes projectis, aindaque animados de mediocre velocidade[46], esmigalharam, esburacaram, fizeram voar em pedaços as chapas de melhor metal. Tinham as cousas chegado a estes pontos, e a todos parecia que a bala devia ficar com a palma da victoria, quando terminou a guerra no mesmo dia em que Nicholl dava a ultima demão a uma nova couraça de aço forjado! No seu genero, era esta verdadeira obra prima, e capaz de desafiar todos os projectis imaginaveis. Fê-la o capitão transportar para o polygono de Washington, e mandou cartel ao presidente do Gun-Club, desafiando-o a vará-la. Barbicane, como a paz já estava feita, não quiz tentar a experiencia. Nicholl, então, furioso, offereceu expor a chapa que inventara ao choque das balas mais inverosimeis, massiças, ôcas, esphericas ou conicas. Recusa do presidente, que decididamente não queria arriscar os louros da ultima victoria que alcançára. Nicholl, ainda mais estimulado por aquella inqualificavel obstinação, quiz tentar Barbicane dando-lhe de partido todas as probabilidades favoraveis, e propoz-lhe collocar a chapa a duzentas jardas de distancia do canhão. E Barbicane a teimar na recusa. A cem jardas? Nem a setenta e cinco. «Pois então a cincoenta, clamou o capitão pela voz dos jornaes, ou a vinte e cinco jardas, e ponho-me eu por detrás da minha couraça!» Barbicane mandou responder que não atiraria, nem que o capitão Nicholl se pozesse diante em vez de se pôr de trás. Ao ler esta ultima replica não pôde Nicholl conter-se mais, e arrastou a discussão para o campo das personalidades, insinuando que a cobardia era cousa indivisivel, e que o homem que se recusa a disparar um tiro de canhão não está muito longe de ter-lhe medo, que em summa esses artilheiros que nos tempos de agora se batem a seis milhas de distancia substituiam prudentemente a coragem individual por formulas de mathematicas, e que no fim de contas tanta coragem havia em esperar placidamente uma bala detrás de uma couraça; como em arremessa-la com todas as regras da arte. Nem palavra respondeu Barbicane a taes insinuações; talvez mesmo nem d'ellas tivesse conhecimento, que lhe absorviam por então todas as forças do espirito os calculos previos do seu grande projecto. Quando Barbicane realisou a famosa communicação ao Gun-Club, é que a raiva do capitão Nicholl chegou ao paroxysmo. Referviam-lhe com ella n'alma um ciume immenso e um sentimento de impotencia absoluta! Que havia de inventar que fosse superior áquella columbiada de novecentos pés! Qual havia de ser a couraça capaz de resistir a um projectil de trinta mil libras! Nos primeiros momentos ficou Nicholl aterrado, aniquilado, esmigalhado por aquelle «tiro de canhão»; mas depois levantou-se, e resolveu esmagar a proposta debaixo do peso da sua argumentação. Combateu por consequencia com grande violencia os trabalhos do Gun-Club; publicou grande numero de cartas, de que os jornaes não recusaram a reproducção. Tentou demolir scientificamente a obra de Barbicane, e uma vez iniciada a guerra, serviu-se de toda a casta de argumentos, que, força é dize-lo, foram as mais das vezes especiosos e de baixo quilate. O ataque a Barbicane começou, e com summa violencia, pelas questões de algarismos; Nicholl tentou demonstrar por A+B que eram falsas as formulas de que se servia o presidente, e accusou-o de ignorar os principios rudimentares da balistica. Entre outros erros de que lhe fazia cargo, apontava-lhe a impossibilidade, demonstrada, segundo os calculos d'elle Nicholl, de imprimir a um corpo qualquer a velocidade de doze mil jardas por segundo; sustentou com a algebra em punho, que ainda mesmo animado d'essa velocidade, nunca projectil de peso tal havia de ir alem dos limites da atmosphera terrestre! Nem sequer oito leguas havia de percorrer! Ainda mais. Dado, mas não concedido que se podesse conseguir tal velocidade, e ainda reputada esta sufficiente, nem o obuz poderia resistir á pressão dos gazes, que se haviam de desenvolver pela inflammação de um milhão e seiscentas mil libras de polvora, nem que resistisse a essa pressão poderia supportar temperatura de tal ordem. Havia sim de derreter-se ao sair da columbiada, e cair em chuva de fogo por sobre os craneos dos imprudentes espectadores. Barbicane nem deu mostras de perceber o ataque, e proseguiu na obra encetada. [Figura: Foi necessario pôr sentinellas á vista aos deputados (pag. 103).] Nicholl então discutiu o assumpto por outra ordem de considerações; não fallando já na provada inutilidade da experiencia sob todos os respeitos, considerou-a como extremamente perigosa, quer para os cidadãos que viessem auctorisar com a sua presença tão condemnavel espectaculo, quer para as cidades que ficassem proximas do deploravel canhão; fez tambem notar que se o projectil não alcançasse o alvo, o contrario do que era aliás absolutamente impossivel, evidentemente havia de cair na Terra, e que a quéda de uma massa d'aquella ordem, multiplicada pelo quadrado da respectiva velocidade, viria a pôr em grave risco um qualquer ponto do globo: em conclusão que, em circumstancias taes, casos havia em que, sem atacar nem de leve os direitos dos cidadãos livres, se tornava necessaria a intervenção do governo, poisque se não devia pôr em risco a segurança de todos por dar satisfação aos caprichos de um só. [Figura: Abriram-se as subscripções (pag. 108).] Do que deixâmos dito se deprehende qual o grau de exageração a que se deixára arrastar o capitão Nicholl. Da opinião que professava era o capitão sectario unico, e por conseguinte ninguem lhe ligou importancia ás agourentas prophecias. Deixaram-no gritar á vontade, e que seccasse os bofes, já que o levava em gosto. Fizera-se o capitão defensor de uma causa de antemão perdida: ouviam-no, mas ninguem o escutava, e nem um só admirador pôde arrancar ao presidente do Gun-Club. Este nem se deu ao trabalho de refutar os argumentos do adversario. Nicholl, mettido n'este beco sem saída, e sem poder ao menos arriscar o corpo em prol da causa que defendia, resolveu arriscar ao menos o dinheiro. Em consequencia propoz publicamente no _Enquirer_ de Richmond uma serie de apostas em proporção ascendente, cujo quadro é o seguinte: Apostava o capitão: 1.^o Que não chegariam a realisar-se fundos sufficientes para levar a effeito o emprehendimento do Gun-Club 1:000 dollars 2.^o Que a operação de fundir um canhão de novecentos pés de comprimento era impraticavel e não podia ter bom exito 2:000 dollars 3.^o Que havia de ser impossivel carregar a columbiada, e que o pyroxylo se havia de inflammar por si proprio só pela pressão do projectil 3:000 dollars 4.^o Que a columbiada havia de rebentar ao primeiro tiro 4:000 dollars 5.^o Que a bala não havia de percorrer nem seis milhas de trajectoria, e tornaria a cair na Terra alguns segundos depois de disparado o tiro 5:000 dollars Por aqui se vê que importante somma arriscava o capitão, só por sustentar a sua invencivel teimosia. Eram nada menos de quinze mil dollars[47]. Apesar da importancia da aposta, recebeu o capitão no dia 19 de maio um bilhete lacrado, concebido nos termos de soberbo laconismo que se seguem: «Baltimore, 18 de outubro.--Acceito.--_Barbicane_.» CAPITULO XI A FLÓRIDA E O TEXAS Entretanto estava ainda uma questão por decidir; faltava escolher logar propicio para fazer a experiencia. Segundo as recommendações do observatorio de Cambridge, devia o tiro ser dirigido perpendicularmente ao plano do horisonte, isto é, para o zenith; e visto como a Lua não chega ao zenith senão dos logares terrestres situados entre 0^o e 28^o de latitude, ou, por outras palavras, como a declinação lunar maxima é apenas de 28^o[48], estava o problema reduzido a determinar exactamente o ponto do globo onde deveria ser fundida a immensa columbiada. No dia 20 de outubro estava reunido o Gun-Club em sessão magna, e Barbicane levára comsigo um magnifico mappa dos Estados Unidos, de Z. Belltropp. Porém J.-T. Maston, sem lhe dar tempo nem para o desenrolar, pediu a palavra com a sua vehemencia habitual, e encetou o debate nos seguintes termos: «Honrados collegas, o assumpto que vae hoje aqui ser discutido tem uma importancia verdadeiramente nacional, e vae offerecer-nos occasião de praticarmos um grande acto de patriotismo.» Os socios do Gun-Club olharam uns para os outros, sem que ninguem lograsse attingir o ponto de mira do orador. «Nenhum de vós, proseguiu este, pensa sequer em transigir em cousa que diga respeito á gloria do seu paiz, e se algum direito ha que a União possa com justiça reivindicar, é por certo o de conter em seus flancos o formidavel canhão do Gun-Club. Ora, nas circumstancias actuaes... --Caro Maston, interrompeu o presidente. «Permitti-me que desenvolva o meu pensamento, proseguiu o orador. Nas circumstancias actuaes somos forçados a escolher um logar terrestre sufficientemente proximo do equador, para que a experiencia seja feita em boas condições... --Se me daes licença, tornou Barbicane. --Peço livre discussão das idéas de cada um, replicou o effervescente J.-T. Maston, e sustento que o territorio d'onde ha de partir o nosso glorioso projectil deve ser parte integrante da União americana. --Isso não tem a menor duvida! responderam alguns socios. --Pois bem! Já que nossas fronteiras não são bastantemente amplas, já que pela parte do sul o Oceano nos oppõe insuperavel obstaculo, já que nos é forçoso ir alem dos Estados Unidos e a um paiz limitrophe buscar esse vigesimo oitavo parallelo, considero o facto como um legitimo _casus belli_, e proponho que se declare guerra ao Mexico! --Nada! isso não! exclamaram de todos os lados. --Não! replicou J.-T. Maston. É essa uma palavra que pasmo de ouvir n'este recinto! --Mas attendei!... --Nunca! Não tenho que attender! exclamou o fogoso orador. Mais tarde ou mais cedo ha de vir a realisar-se essa guerra, e o que vos proponho é que rebente hoje mesmo. --Maston, disse Barbicane, forçando a attenção do orador pela ruidosa detonação da campainha presidencial, retiro-vos a palavra! Maston ainda queria replicar, mas alguns dos collegas conseguiram conte-lo. «Concordo, disse Barbicane, em que a experiencia não póde nem deve ser tentada senão em terras da União; mas se o meu impaciente amigo me tivera deixado fallar, se tivera sequer volvido os olhos para um mappa, saberia que é perfeitamente inutil declarar guerra aos vizinhos, visto como algumas das fronteiras dos Estados Unidos se estendem alem do parallelo vigesimo oitavo. Senão vejam: temos ao nosso dispor toda a parte meridional do Texas e das Floridas.» Terminou por aqui o incidente; mas não foi sem custo que J.-T. Maston se deixou convencer. Decidiu-se, em consequencia, que a columbiada havia de ser fundida e moldada no solo do Texas ou no da Florida. Porém esta resolução estava destinada para fazer nascer uma rivalidade sem exemplo entre as cidades d'estes dois estados. O vigesimo oitavo parallelo corta a costa americana pela peninsula da Florida, que divide em duas partes approximadamente iguaes, lança-se depois no golpho do Mexico, e subtende o arco formado pelas costas do Alabama, do Mississipi e da Luiziania. Passa d'ahi ao Texas, do qual corta uma saliencia, e prolonga-se através do Mexico, transpõe a Sonora, salta por cima da velha California e vae perder-se nos mares do Pacifico. Não havia pois senão as porções da Florida e do Texas, situadas ao sul d'esse parallelo, que estivessem nas condições de latitude recommendadas pelo observatorio de Cambridge. Na parte meridional da Florida não se encontram cidades de importancia, e só por ali pullulam fortalezas levantadas para servir de defeza contra os indios nomadas. Só uma cidade, Tampa-Town, podia reclamar em favor da sua situação na lide e apresentar-se com alguns direitos a ser attendida. Pelo contrario, no Texas são mais numerosas e mais importantes as cidades. Corpus-Christi no _condado_ de Nucces, e todas as cidades situadas no Rio Bravo, taes como Laredo, Comalites e Santo Ignacio; no Web, taes como Roma e Rio Grande City; no Stow, taes como Edimburgo; no Hidalgo, Santa Rita, El Panda e Brownsville e as do Caméron formaram uma liga imponente contra as pretensões da Florida. Assim, logo que se tornou publica a resolução chegaram a Baltimore pela via mais rapida os deputados floridenses e texianos, e a partir d'esse momento o presidente Barbicane e os socios de influencia do Gun-Club viram-se cercados dia e noite de reclamações formidaveis. Na Grecia foram sete as cidades que disputaram a honra de terem sido berço de Homero; aqui dois Estados inteiros estiveram quasi a chegar ás do cabo por causa de um canhão. Viram-se então aquelles «ferozes irmãos» passeiar armados pelas ruas da cidade. E sempre que se encontravam era de temer conflicto, que poderia ter serias consequencias. Mas emfim lá estavam a habilidade e a prudencia do presidente Barbicane para conjurar o perigo. Ás demonstrações pessoaes serviu de derivativo a publicidade dos jornaes dos differentes Estados. Foram sustentaculos da causa do Texas o _New York Herald_ e a _Tribuna_, ao passo que o _Times_ e a _American Review_ tomaram decididamente as partes pelos deputados floridenses. Os socios do Gun-Club é que não sabiam a quem haviam de dar ouvidos. Apresentava-se altivo o Texas com seus vinte e seis condados, dispostos a modo de bateria; respondia-lhe a Florida, que para territorio seis vezes menor valem doze condados mais do que vinte e seis. O Texas impava com os seus trezentos e trinta mil indigenas; mas a Florida, que tem menor superficie, jactava-se de poder reputar-se mais povoada com os seus cincoenta e seis mil; e não ficava por aqui: chegava a accusar o Texas de possuir certa especialidade de febres paludosas, que uns annos por outros lhe vinham a custar alguns milhares de habitantes, e o caso é que não mentia. O Texas, pela sua parte replicava: que a respeito de febres, nada tinha a Florida que lhe invejar, e que era, pelo menos, imprudente quem chamava aos outros paizes insalubres, tendo a honra de ter em casa o _vomito negro_ no estado chronico. E o caso é que o Texas tambem fallava verdade. «Demais a mais, accrescentavam os texianos pela via do _New-York Herald_, de alguma consideração é credor o estado onde nasce o melhor algodão de toda a America, o estado que produz a melhor madeira de carvalho para construcção de navios, o estado que tem nas entranhas dos seus terrenos soberba _hulha_, e minas taes, que o seu producto em ferro é de cincoenta por cento do minerio puro.» A isto replicava o _American Review_, que o solo da Florida, sem ter aliás tantas riquezas, offerecia todavia melhores condições para moldar e fundir a columbiada, visto como era composto de areias e terras argillosas. Porém, tornavam os do Texas, antes de fundir seja lá o que for n'um paiz qualquer, é preciso lá ir; e as communicações com a Florida são difficeis, entretanto que a costa do Texas tem a bahia de Galveston, que mede quatorze leguas em seu contorno, e que era capaz de alojar a um tempo todas as esquadras do mundo. Pois muito bem! É essa então a via de communicação que apresentaes; a bahia de Galveston, que está situada ao norte do vigesimo nono parallelo? E nós não temos a bahia do Espirito Santo, que se abre precisamente no vigesimo oitavo grau de latitude, e pela qual os navios vão directamente até Tampa-Town? --Bonita bahia! respondia o Texas; meia entupida pelas areias! --Entupidos estarão elles! exclamava a Florida. Cuidam que tratam com algum paiz de selvagens? --Verdade é, que os seminolas ainda fazem correrias nas planicies da Florida! --E então! e os apaches, e os comanches, é gente civilisada!» Proseguia este dize tu direi eu havia já dias, quando os da Florida tentaram arrastar os adversarios para outro terreno. Uma bella manhã o _Times_ insinuou surrateiramente, que como o emprehendimento era «essencialmente americano», não podia ser tentado senão em territorio «essencialmente americano!» --Estas palavras fizeram ir aos ares os do Texas: «Americanos! e não o seremos nós com tanto direito como vós outros? Pois o Texas e a Florida não foram ambos encorporados na União em 1845? --Ninguem o contesta, respondeu o _Times_, mas nós cá sempre pertencemos ao numero dos americanos desde 1820. --Bem sabemos, replicou a _Tribuna_; foram hespanhoes ou inglezes por alguns duzentos annos, e depois foram vendidos aos Estados Unidos por cinco milhões de dollars! --E isso que importa! replicaram os da Florida, é acaso motivo que nos faça córar? E a Luiziania não foi comprada a Napoleão em 1803, por dezeseis milhões de dollars!?[49] É mesmo uma vergonha! clamaram os deputados de Texas. Atrever-se um miseravel bocado de terra tal como a Florida a querer comparar-se com o Texas, que em vez de se vender conquistou por seus proprios esforços a independencia, que expulsou os mexicanos em 2 de março de 1836, que se declarou republica federativa depois da victoria alcançada por Samuel Houston nas margens do San-Jacinto sobre as tropas de Sant'Anna! Finalmente, com um paiz que se uniu voluntariamente aos Estados Unidos da America! --É porque tinha medo dos mexicanos!» respondeu a Florida. Medo! desde o dia em que escapou tal palavra, na realidade um tanto violenta, a _posição tornou-se_ intoleravel. Era crença geral que haveria carnificina dos dois partidos nas ruas de Baltimore. Julgou-se necessario mandar guardar os deputados com sentinellas á vista. O presidente Barbicane é que não sabia para onde se havia de virar. Choviam-lhe em casa notas, documentos, cartas prenhes de ameaças. Que solução havia de adoptar? Em relação ao apropriado do solo, á facilidade de communicações, da rapidez dos transportes, não havia differença nos direitos dos dois estados. Ás personalidades politicas não havia que attender em assumpto tal. Durava esta hesitação, esta perplexidade ha muito, quando Barbicane tomou a resolução de cortar de vez o nó; fez por conseguinte reunir os collegas e propoz-lhes uma solução profundamente sensata, como vae ver-se. «Reflectindo seriamente, lhes disse, no que acaba de passar-se entre a Florida e o Texas, é claro que hão de reproduzir-se as mesmas difficuldades entre as cidades do estado que favorecermos. A rivalidade ha de descer do genero á especie, do estado á cidade, e nós ficaremos na mesma. Ora o Texas possue onze cidades nas condições requeridas, que hão de disputar entre si a honra do emprehendimento, e se escolhermos alguma d'ellas, vamos forjar por nossas proprias mãos novos dissabores, entretanto que a Florida só tem uma. Seja pois a Florida o estado, e Tampa-Town a cidade escolhida!» Esta decisão, logoque se deu a publico, foi o ultimo golpe nos deputados do Texas, dos quaes se apossou _indescriptivel furia_, chegando a dirigir provocações pessoaes aos socios do Gun-Club. Não tiveram mais remedio os magistrados de Baltimore, e foi d'elle que usaram, do que fazer apromptar um comboio especial, onde por vontade ou por força obrigaram a embarcar os do Texas, que largaram assim da cidade com a rapidez de trinta milhas por hora. Porém, apesar da velocidade, com que íam levados, ainda lhes sobrou tempo para arremessarem aos adversarios um ultimo e ameaçador sarcasmo. Alludindo á pequena largura da Florida, estreita peninsula apertada entre dois mares, affirmaram que não havia de resistir ao abalo do tiro, e que havia de despedaçar-se com a força d'elle. «Pois deixa-la despedaçar!» responderam os da Florida com laconismo digno dos tempos antigos. CAPITULO XII URBI ET ORBI Vencidas as difficuldades astronomicas, mechanicas e topographicas, vinha naturalmente a pêllo a questão de dinheiro. A realisação do projecto exigia uma despeza enorme. Não havia particular nem mesmo estado que podesse dispor só por si de tantos milhões quantos eram necessarios. Tomou portanto o presidente Barbicane a resolução de fazer do emprehendimento, ainda que americano, um negocio de interesse universal, e de pedir a todos os povos a sua cooperação financeira. Era a um tempo dever e direito de toda a terra intervir nos negocios do seu satellite. A subscripção aberta em Baltimore n'este sentido estendeu-se ao mundo inteiro, _urbi et orbi_. Estava esta subscripção destinada a ter um exito superior a tudo que era de esperar, apesar de se tratar de quantias dadas que não emprestadas. A operação era puramente desinteressada, porque não apresentava nem remota probabilidade de lucro. Porém o effeito da proposta Barbicane, e que não tinha parado nas fronteiras dos Estados Unidos; antes tinha saltado por cima do Atlantico e do Pacifico, para invadir a um tempo a Asia e a Europa, a Africa e a Oceania. Os differentes observatorios da União pozeram-se desde logo em communicação immediata com os observatorios do estrangeiro; alguns, como o de Paris, de Petersburgo, do Cabo, de Berlim, de Altona, de Stockholmo, de Varsovia, de Hamburgo, de Buda, de Bolonha, de Malta, de Lisboa, de Benarés, de Madrasta, de Pekin dirigiram cumprimentos de felicitação ao Gun-Club; outros conservaram-se em prudente expectativa. [Figura: A fabrica de Goldspring, perto de New York (pag. 112).] O observatorio de Greenwich, esse, com approvação dos outros vinte e dois estabelecimentos similares da Gran-Bretanha, foi claro e terminante; e negou com firmeza a possibilidade de bom exito, seguindo sem hesitação as theorias do capitão Nicholl. E n'estes termos, ao passo que muitas sociedades scientificas promettiam até enviar delegados seus a Tampa-Town, o pessoal scientifico do observatorio de Greenwich reunido em sessão, apresentada a proposta Barbicane, passou brutalmente á ordem do dia. [Figura: Tampa-Town, antes da operação (pag. 117).] Bello ciume de inglez para americano, nada mais. Em geral, foi excellente o effeito produzido no mundo scientifico, e d'ahi se communicou ás massas, que, pela maior parte, se tomaram de paixão pelo assumpto. Facto este de magna importancia, poisque estas mesmas massas iam ser convidadas a subscrever para a realisação de um capital consideravel. No dia 8 de outubro já o presidente Barbicane tinha publicado um manifesto cheio de enthusiasmo, no qual appellava para «todos os homens de boa vontade da Terra.» Este documento, aliás traduzido em todas as linguas, deu optimo resultado. Abriram-se as subscripções parciaes nas principaes cidades da União, para serem centralisadas no banco de Baltimore, rua de Baltimore n.^o 9, e depois nos differentes estados dos dois continentes: Em Vienna na casa S.-M. de Rothschild; Em Petersburgo, casa Stieglitz e C.^a; Em Paris, no Credito mobiliario; Em Stockholmo, casa Totie e Arfuredson; Em Londres, casa de N.-M. de Rothschild e filhos; Em Turim, casa Ardouin e C.^a; Em Berlim, casa Mendelsohn; Em Genebra, casa Lombard, Odier e C.^a; Em Constantinopla, no Banco ottomano; Em Bruxellas, casa S. Lambert; Em Madrid, casa Daniel Weisweller; Em Amsterdam, no Credito neerlandez; Em Roma, casa Torlonia e C.^a; Em Lisboa, casa Lecesne; Em Copenhague, no Banco privativo; Em Buenos-Ayres, no banco Mauá; No Rio de Janeiro, na mesma casa; Em Montevideo, na mesma casa; Em Valparaizo, casa Thomás La Chambre e C.^a; No Mexico, casa Martin Daran e C.^a; Em Lima, casa Thomaz La Chambre e C.^a Tres dias depois da publicação do manifesto do presidente Barbicane estavam subscriptos nas differentes cidades da União, quatro milhões de dollars[50]. Com esta somma, por conta de maior quantia, já o Gun-Club podia ir fazendo alguma cousa. Dias depois, noticiavam os despachos telegraphicos á America que as subscripções no estrangeiro eram cobertas com verdadeiro enthusiasmo. Alguns paizes faziam-se notaveis pela generosidade da sua offerta. A outros lá custava mais a desapertar os cordões á bolsa. Questão de temperamento. Em summa, mais eloquentes são os algarismos que as palavras, e eis a descripção official das sommas que foram escripturadas no activo do Gun-Club, logoque se encerrou a subscripção. A Russia deu como contingente a enorme quantia de trezentos sessenta e oito mil setecentos e trinta e tres rublos[51], e só poderá causar espanto a grandeza da quantia a quem desconhecer o gosto dos russos pelas sciencias, e o progresso que imprimem aos estudos astronomicos, devido aos numerosos observatorios que possuem, dos quaes um, o de mais importancia, custou dois milhões de rublos. A França começou por se rir das pretensões dos americanos. Serviu ali a Lua de pretexto a mil calembourgs já estafados, e a algumas dezenas de _vaudevilles_ em que o mau gosto e a ignorancia disputavam primazias. Porém os francezes, que já de antiga data trazem o habito de cantar e ainda em cima pagar, d'esta vez riram, mas tambem depois pagaram, subscrevendo com a quantia de um milhão e duzentos e cincoenta tres mil novecentos e trinta francos[52]. Por este preço realmente assistia-lhes o direito de se divertirem um bocado. A Austria, apesar dos seus apertos financeiros, mostrou generosidade bastante. Elevou-se a parte d'esta potencia, na contribuição geral, á quantia de duzentos e dezeseis mil florins[53], que bem boa conta fizeram. Cincoenta e dois mil rixdales[54] foi o obolo da Suecia e da Noruega. A cifra já era de consideração em proporção do paiz; porém, maior ainda teria sido, se a subscripção se tivera aberto ao mesmo tempo em Christiania e em Stockholmo. Seja lá por que rasão for, o caso é que os norueguezes não gostam de mandar o seu dinheiro para a Suecia. A Prussia deu testemunho, mandando duzentos e cincoenta mil thalers[55], de que prestava á tentativa a sua alta approvação. Os differentes observatorios d'esta nação contribuiram de boa vontade com uma quantia importante, e foram dos que com mais ardor animaram o presidente Barbicane. A Turquia portou-se com generosidade, e não admira porque estava pessoalmente interessada n'aquelle assumpto, visto ser a Lua quem lhe fixa o curso dos mezes e a epocha dos jejuns do Ramadan. Nem lhe ficava bem dar menos de um milhão trezentas e setenta e duas mil seiscentas e quarenta piastras[56], que foi o que effectivamente deu, e com ardor tal que parecia até dar a entender que houvera certa pressão da parte do governo da Porta. A Belgica distinguiu-se entre todos os estados de segunda ordem por um donativo de quinhentos e treze mil francos[57], proximamente treze centimos[58] por habitante. A Hollanda e suas colonias tomaram parte na operação com cento e dez mil florins[59], mas sempre foram pedindo cinco por cento de desconto, visto pagarem de contado. A Dinamarca, um tanto restricta em extensão territorial sempre rendeu novecentos mil ducados de oiro fino[60], o que é prova do amor que os dinamarquezes consagram ás expedições scientificas. A Confederação germanica cooperou com trinta e quatro mil duzentos e oitenta e cinco florins[61]; não se lhe podia exigir mais, nem que lh'o exigissem o daria. Apesar dos seus grandes apuros a Italia sempre encontrou nas algibeiras dos seus filhos duzentas mil liras[62], mas foi preciso rebusca-las bem. Se a Italia já estivera de posse do Veneto melhor iria o negocio, mas o caso é que ainda não possuia o Veneto. Os Estados da Igreja entenderam não dever mandar menos de sete mil e quarenta escudos romanos[63], e Portugal levou a sua dedicação pela sciencia até trinta mil cruzados. O Mexico, esse deu o obolo da viuva, oitenta e seis piastras fortes[64]; verdade é que os imperios, nos primeiros tempos da sua fundação, sempre vivem pouco á larga de meios. De duzentos e cincoenta e sete francos[65] foi o auxilio modesto prestado pela Suissa á obra americana. Força é dize-lo e francamente, a Suissa não percebia o lado pratico da operação; não se lhe afigurava que o acto de arremessar uma bala á Lua fosse preliminar adequado para entabolar relações commerciaes com o astro das noites, e n'este presupposto pareceu-lhe pouco prudente empenhar capitaes em tentativa tão aleatoria. E no fim de contas talvez a Suissa tivesse rasão. Em Hespanha é que foi impossivel juntar mais de cento e dez reales[66], circumstancia a que serviu de pretexto ter a nação que acabar os seus caminhos de ferro. Mas a verdade é que a sciencia não é cousa lá muito bem vista em tal paiz, que ainda está um tanto atrazado. E demais, havia certos hespanhoes, e não eram dos menos illustrados, que não concebiam com exactidão que relação havia entre a massa do projectil comparada com a da Lua, e que temiam que o choque fosse alterar a orbita do astro, perturba-lo no seu papel de satellite, provocando-lhe a quéda na superficie do globo terrestre. Em casos taes o melhor era abster-se. E foi o que, com differença de alguns poucos _reales_, fizeram os hespanhoes. Falta a Inglaterra. Já dissemos com que desdenhosa antipathia fôra ali recebida a proposta Barbicane. Os inglezes têem todos uma só e mesma alma para todos os vinte e cinco milhões de habitantes que povoam a Gran-Bretanha. Limitaram-se a dar a entender que o emprehendimento do Gun-Club era contrario ao «principio de não intervenção», e nem com um ceitil concorreram. O Gun-Club, quando soube tal nova, deu-se por satisfeito em erguer os hombros, e proseguiu na sua grande tarefa. Logoque a America do Sul, isto é, Peru, Chili, Brazil, provincias do Plata, Columbia entregaram a sua quota de trezentos mil dollars[67], ficou o Gun-Club de posse do consideravel capital cujo computo detalhado segue: Dollars Subscripção dos Estados Unidos 4.000:000 Subscripções estrangeiras 1.446:675 --------- Somma 5.446:675 --------- Eram portanto cinco milhões quatrocentos e quarenta e seis mil seiscentos e setenta e cinco dollars[68], que o publico tinha despejado nos cofres do Gun-Club. A ninguem deve causar surpreza a importancia de tal somma. Os trabalhos de fundição e brocagem, obra de pedra e cal, transporte de operarios e installação d'estes n'uma região quasi deshabitada, construcção de fornos e edificios diversos, acquisição de ferramenta para officinas, polvora, projectil e despezas perdidas, deviam, segundo os orçamentos feitos, absorve-la quasi por inteiro. Houve tiro na guerra federal que ficou por mil dollars, não era pois de admirar que o do presidente Barbicane, unico nos fastos da artilheria, custasse cinco mil vezes mais. No dia 20 de outubro assignou-se um contrato com a fabrica de fundição de Goldspring, perto de New-York, que, durante a guerra, fôra a que melhores canhões de ferro fundido fornecêra a Parrott. Estipulou-se entre os outorgantes, que a fabrica de fundição de Goldspring se obrigava a transportar para Tampa-Town, cidade da Florida meridional, todo o material necessario para a fundição da Columbiada. A operação da fundição devia concluir-se, o mais tardar, até ao dia 15 de outubro proximo, e até ao mesmo dia ser entregue o canhão e em bom estado, sob pena de multa de cem dollars[69] por dia até aquelle em que a Lua se tornasse a apresentar nas mesmas condições, isto é, por tantos dias quantos se contam em dezoito annos e onze dias. O engajamento de operarios, ferias e accommodações necessarias ficavam por conta da companhia de Goldspring. O contrato, feito em duplicado e _bona fide_, foi assignado por J. Barbicane, na qualidade de presidente do Gun-Club, e por J. Murphison, como director da fabrica de fundição de Goldspring, e cada uma das partes deu plena approvação ás estipulações da escriptura. CAPITULO XIII STONE'S-HILL Desde que se tornára notoria a escolha feita pelos socios do Gun-Club em prejuizo do Texas, toda a gente na America, onde tudo sabe ler, se julgou obrigada a estudar a geographia da Florida. Nunca os livreiros venderam tanto exemplar de _Bartram's travel in Florida_, do _Romans's natural history of East and West Florida_, do _William's territory of Florida_, do _Cleland on the culture of the Sugar-Cane in East Florida_, etc. Tornou-se necessaria a impressão de novas edições. Era um verdadeiro delirio. Barbicane não era homem que se contentasse com leituras, queria ver as cousas com os proprios olhos e escolher em pessoa a collocação da Columbiada. Por consequencia, sem perda de um momento, poz á disposição do observatorio de Cambridge os fundos necessarios para a construcção de um telescopio, contratou com a casa Broadwill & C.^a de Albany a feitura do projectil de aluminium, e partiu logo de Baltimore acompanhado por J.-T. Maston, pelo major Elphiston e pelo director da fabrica de Goldspring. No dia seguinte chegavam os quatro companheiros de jornada á Nova Orleans, onde embarcaram sem demora no _Tampico_, aviso da marinha federal, que o governo puzera á disposição d'elles. Aquecidas as fornalhas, em poucos momentos deixaram de enxergar as praias da Luiziania. Não foi comprida a viagem; dois dias depois da partida, e tendo percorrido quatrocentas e oitenta milhas[70], chegou o _Tampico_ á vista da costa da Florida. Ao passo que o navio se approximava da costa, ía apparecendo aos olhos de Barbicane um territorio baixo, chato, com apparencias de pouca fertilidade. Depois de costear uma serie de enseadas abundantes em ostras e lagostas, entrou finalmente o _Tampico_ na bahia do Espirito Santo. Divide-se esta bahia em duas barras estreitas e compridas, a de Tampa e a de Hillisboro, cuja apertada embocadura o steamer passou em poucos momentos. Pouco tempo depois já se destacavam por cima das ondas as baterias rasantes do forte Brooke, e apparecia a cidade de Tampa negligentemente recostada no fundo do pequeno porto natural formado pela foz do rio Hillisboro. N'este logar fundeou o _Tampico_, a 22 de outubro, pelas sete horas da noite; os quatro passageiros desembarcaram immediatamente. Barbicane sentiu que lhe palpitava com violencia o coração quando pisou o solo da Florida. Parecia palpa-lo com os pés, como faz o architecto que pretende experimentar a segurança de um edificio. J.-T. Maston, esse excavava a terra com a ponta do gancho. «Senhores, disse então Barbicane, não temos tempo a perder, já ámanhã havemos de montar a cavallo para fazer um primeiro reconhecimento no paiz.» No momento em que Barbicane desembarcava, os tres mil habitantes de Tampa-Town, tinham avançado a saír-lhe ao encontro, honra bem cabida no presidente do Gun-Club, que os favorecêra na escolha por elle indicada. Receberam-no com formidaveis acclamações, mas Barbicane escapou-se a todas aquellas ovações, e conseguiu metter-se n'um quarto do hotel Franklin, onde não quiz receber pessoa alguma. Decididamente não lhe quadrava o papel de homem celebre. No dia seguinte, 23 de outubro, já lhe curveteavam debaixo das janellas uns pequenos cavallos de raça hespanhola, todos fogo e vigor. Mas não eram quatro senão cincoenta, com outros tantos cavalleiros. Barbicane desceu acompanhado pelos tres companheiros, e admirou-se a principio de se achar rodeado de tão numerosa cavalgata. Tambem fez reparo em que cada cavalleiro trazia a sua carabina a tiracolo e pistolas nos coldres. Mas foi logo informado por um moço floridense dos motivos de similhante apparato de força. «Senhor, é por causa dos seminólas. --Quaes seminólas? --Os selvagens que percorrem a planicie; foi por isso que julgámos prudente escoltar-vos. --Ora qual! interrompeu J.-T. Maston, conseguindo içar-se por escalada ao dorso do animal que lhe fôra destinado. --Emfim, volveu o floridense, sempre é mais seguro. --Meus senhores, respondeu Barbicane, agradeço-vos as vossas attenções, e agora a caminho! E o pequeno rancho abalou logo, desapparecendo no meio de nuvens de poeira. Eram cinco da manhã, o sol já estava resplandecente e o thermometro marcava 84^o[71]; entretanto as frescas virações do mar moderavam a ardencia excessiva da temperatura. Barbicane logoque saíu de Tampa-Town inclinou para o sul, seguindo a costa com o fim de alcançar o creek[72] de Alifia, que é um arroio que vae desaguar na bahia de Hillisboro, doze milhas abaixo de Tampa-Town. Continuaram Barbicane e companheiros seguindo a margem direita, subindo para leste. Dentro em pouco foram-se escondendo por detrás de um accidente do terreno as aguas da bahia, e não viram os viajantes senão campinas da Florida. A Florida póde dividir-se em duas partes: uma ao norte, mais abundante em população, menos abandonada, tem por capital Tallashassêa e possue Pensacola, um dos mais importantes arsenaes maritimos dos Estados Unidos; a outra, encerrada entre a America e o golpho do Mexico, que a estreitam entre suas aguas, é apenas uma delgada peninsula corroida pela corrente do Gulf-Stream, lingua de terra como que perdida por entre as ilhas de um pequeno archipelago, e que incessantemente dobram os numerosos navios que buscam o canal de Bahama. É como que um posto avançado do golpho das grandes tempestades. [Figura: Tiveram de passar a vau muitos rios (pag. 120).] A superficie da Florida é de trinta e oito milhões e trinta e tres mil duzentos e sessenta e sete acres[73], dentro dos quaes se devia escolher um situado para áquem do vigesimo oitavo parallelo, e em condições convenientes para a tentativa; por isso Barbicane, ao passo que cavalgava, ía examinando com attenção a configuração e a particular distribuição do solo. [Figura: Os trabalhos avançavam regularmente (pag. 129).] A Florida, descoberta por Juan Ponce de Leon em 1512, no domingo de Ramos, deveu a esta circumstancia seu primeiro nome de Paschoa-Florida, encantadora denominação bem mal cabida n'aquellas costas aridas e abrazadas. Mas a algumas milhas da praia, ía pouco e pouco mudando a natureza do terreno, e o paiz mostrando-se digno do nome primitivo; o solo era cortado por uma rede de creeks, de rios, de ribeiros, de lagoas e de pequenos lagos; mas logo a campina começou a elevar-se sensivelmente, e dentro em pouco deixou ver plainos onde se davam admiravelmente todas as producções vegetaes do norte e do meio dia, campos immensos, onde todas as despezas e trabalhos da cultura são feitos pelo sol dos tropicos e pelas aguas retidas no subsolo de argilla, e finalmente prados de ananazes, de inhames, de tabaco, de arroz, de algodão, de canna de assucar, que se estendiam a perder de vista, ostentando com descuidosa prodigalidade immensas riquezas. Barbicane mostrou-se muito satisfeito quando verificou que o terreno se ía elevando progressivamente, e como J.-T. Maston o interrogasse a tal respeito: --Meu digno amigo, respondeu, temos interesse de primeira ordem em fundir a Columbiada em terreno alto. --Para estar mais perto da Lua? exclamou o secretario do Gun-Club. --Não, respondeu Barbicane sorrindo-se; que valem algumas poucas toezas de mais ou de menos? Não é por isso, mas porque no centro de terrenos elevados hão de proseguir com maior facilidade os nossos trabalhos: não teremos de lutar com as aguas, circumstancia que nos ha de poupar tubagens compridas e caras, o que é objecto de vulto quando se trata de abrir um fosso de novecentos pés de profundidade. --Tendes rasão, disse então o engenheiro Murchison, devemos afastar-nos quanto possivel dos lençoes de agua na direcção da brocagem; entretanto se encontrarmos nascentes, não é mal sem remedio, ou havemos de esgota-las com machinas, ou desvia-las. É caso diverso dos poços artesianos[74], estreitos e escuros, onde verruma, cubo e sonda, toda a ferramenta do perfurador, em summa, trabalha ás escuras. Aqui não. Havemos de trabalhar com o céu á vista, á luz do dia, com o alvião e picareta em punho; e com o auxilio de algumas minas, a tarefa ha de ir andando com rapidez. --Todavia, replicou Barbicane, se pela elevação do solo ou pela natureza do terreno podérmos evitar a luta com as aguas subterraneas, mais rapido e perfeito ha de ser o trabalho: tratemos pois de abrir fosso em terreno situado a algumas centenas de toezas acima do nivel do mar. --Tem rasão, senhor Barbicane, e se me não engano, dentro em pouco havemos de achar sitio adequado. --Ai! o que eu queria era ouvir já a primeira enxadada, disse o presidente. --E eu a ultima! exclamou J.-T. Maston. --Lá havemos de chegar, senhores, e acreditem que a companhia da fabrica Goldspring não ha de ter que pagar-lhe a multa por mora. --Por Santa Barbara! que deveis ter rasão! replicou J.-T. Maston; cem dollars por dia até que a Lua volte a estar nas mesmas condições, isto é, durante dezoito annos e onze dias, vem a dar, como bem deveis saber, seiscentos e cincoenta e oito mil e cem dollars[75]? --Não, senhor, nem o sabemos, respondeu o engenheiro, nem havemos de ter necessidade de que no-lo façam saber.» Por volta das dez horas da manhã; já o pequeno rancho tinha andado a sua duzia de milhas: ás campinas ferteis succedêra a região das florestas. Desenvolviam-se ali com profusão tropical as mais variadas essencias. Eram formadas aquellas quasi impenetraveis florestas de romeiras, laranjeiras, limoeiros, figueiras, oliveiras, damasqueiros, bananeiras, e grandes cepas de vinha, cujos fructos e flores rivalisavam em colorido e perfume. Á fragrante sombra d'aquellas magnificas arvores cantavam e esvoaçavam numerosissimas aves pintadas de brilhantes côres, entre as quaes se distinguiam mais particularmente as garças americanas, cujo ninho deveria ser um guarda-joias para ser digno d'aquellas preciosidades empennadas. J.-T. Maston e o major não podiam ter diante de si tão opulenta natureza sem lhe admirar as esplendidas bellezas. Mas o presidente Barbicane é que era pouco sensivel a tantas maravilhas, e estava com pressa de proseguir, porque região tão fertil por sua mesma fertilidade lhe desagradava. Não era hydroscopo[76], mas apesar d'isso presentia a agua debaixo dos pés, porque debalde procurava signaes de aridez incontestavel. Entretanto íam avançando; tiveram de passar a vau alguns rios, e não sem perigo, que os caïmans de quinze a dezoito pés de comprimento abundam por aquelles logares. J.-T. Maston ameaçava-os atrevidamente com a temivel ganchorra, mas não conseguia atemorisar senão pelicanos, narsejas e phaetontes, selvagens habitantes d'aquellas margens. Té os grandes flamingos côr de rosa o olhavam com ar de estupidez. Por fim aquelles habitantes das regiões humidas tambem foram desapparecendo; já as arvores, menos grossas, appareciam rareadas em matas menos espessas; alguns grupos isolados se destacavam nas infinitas planuras onde perpassavam em manadas os gamos assustados. «Até que emfim! exclamou Barbicane, levantando-se nos estribos, chegámos á região dos pinheiros. --Que é tambem a dos selvagens,» respondeu o major. E viam-se na verdade no horisonte alguns seminólas; agitavam-se, corriam de uns para os outros nos rapidos corseis, brandindo compridas lanças ou descarregando as espingardas de detonação surda de que costumam usar. Tambem ficaram-se n'estas demonstrações de hostilidade, sem mais inquietar Barbicane e companheiros. Estes estavam collocados no meio de um plaino pedregoso, local vasto e descoberto, de grande numero de acres de extensão, que o sol inundava com raios abrazadores. Era este plaino formado por uma grande entumescencia de terreno, que parecia offerecer aos socios do Gun-Club todas as condições requeridas para a collocação da Columbiada. «Alto! disse Barbicane, parando. Este sitio tem nome cá no paiz? --Chama-se Stone's Hill[77],» respondeu um dos da Florida. Barbicane, sem dizer mais palavra, apeou-se, pegou dos instrumentos e começou a determinar a posição com grande precisão; o pequeno rancho reunido em volta d'elle olhava-o em profundo silencio. N'aquelle momento passava o sol pelo meridiano. Barbicane, passados instantes, escreveu rapidamente o resultado da observação que fizera e disse: «Este logar está situado a trezentas toezas acima do nivel do mar, a 27^o 7' de latitude e a 5^o 7' de longitude oeste[78]; afigura-se-me que a sua natureza arida e penhascosa apresenta todas as condições favoraveis para a experiencia; será portanto n'esta planura que havemos de construir armazens, officinas, fornos, cabanas para operarios, e será d'aqui, d'aqui mesmo, repetiu batendo com o pé no vertice de Stone's-Hill, que o nosso projectil ha de alar-se para os espaços do mundo solar!» CAPITULO XIV ALVIÃO E TROLHA N'aquella mesma noite voltava Barbicane e companheiros a Tampa-Town, e o engenheiro Murchison tornava a embarcar no _Tampico_ para Nova Orleans. Tinha de engajar ali um exercito de operarios, e de trazer comsigo, no regresso, a maior parte do material. Os socios do Gun-Club ficaram em Tampa-Town, para organisarem os primeiros trabalhos com o auxilio da gente do paiz. Oito dias depois do da partida, voltava o _Tampico_ á bahia do Espirito Santo acompanhado de uma esquadrilha de barcos de vapor. Murchison tinha conseguido angariar mil e quinhentos trabalhadores. Nas tristes epochas da escravidão todo o tempo e trabalho que se empregasse em tal empenho teria sido perdido. Porém, desde que a America, terra da liberdade, não conta em seu seio senão homens livres, correm estes onde quer que os chama trabalho bem retribuido. Ora dinheiro é que não faltava ao Gun-Club, que offerecia aos seus salariados, alem de uma feria elevada, gratificações consideraveis e em proporção. O operario engajado para a Florida podia contar, concluida a obra, com um capital depositado em seu nome no banco de Baltimore. Murchison pôde portanto, sem mais incommodos, escolher á vontade e levantar a bitola no que dizia respeito á intelligencia e habilidade dos operarios. É de crer que alistasse n'aquella legião do trabalho a flor dos machinistas, fogueiros, fundidores, caleiros, mineiros, tijoleiros e trabalhadores de todos os generos, pretos ou brancos, sem distincção de cores. No dia 31 de outubro, pelas dez horas da manhã, desembarcou toda aquella multidão nos caes de Tampa-Town; imagine-se que movimento e que actividade haviam de reinar na pequena cidade, cuja população se elevou ao dobro no espaço de um só dia. Tampa-Town havia de lucrar enormemente com a iniciativa do Gun-Club, não tanto com os operarios, que immediatamente foram mandados para Stone's-Hill, como com a affluencia de curiosos que a pouco e pouco foram convergindo de todos os pontos do globo para a peninsula floridense. Nos primeiros dias trabalhou-se na descarga da ferramenta que viera na esquadrilha, assim como machinas, viveres e grande numero de casas de ferro, em peças separadas enumeradas, para se poderem armar. Pela mesma epocha ia Barbicane cravando as primeiras bandeirolas de alinhamento de um caminho de ferro de quinze milhas, destinado a ligar Stone's-Hill com Tampa-Town. São bem conhecidas as condições em que são construidos os caminhos de ferro na America: rodeios a capricho, declives arrojados, obras de arte e parapeitos põem-se de parte, collinas sobem-se de escalada, valles saltam-se, e está feito um caminho de ferro que corre ás cegas, sem se importar com linhas rectas; nem custa grandes quantias nem grandes trabalhos; tem só um inconveniente, completa liberdade de descarrilamentos e de saltos. O de Tampa-Town a Stone's-Hill foi uma perfeita bagatella, que nem grande dinheiro nem grande trabalho exigiu para ficar prompto. Quanto ao mais, Barbicane era a alma d'aquelle mundo que surgira á sua voz. Era elle quem tudo animava, e a todos communicava a propria vida, enthusiasmo e convicção; em toda a parte estava, como se possuíra condão de ubiquidade, e sempre acompanhado de J.-T. Maston, que desempenhava junto d'elle o papel de mosca zumbideira. Com Barbicane, nem havia obstaculos, nem difficuldades, nem hesitações; era tão mestre nos officios de mineiro, de pedreiro ou de machinista como no de artilheiro; tinha sempre resposta prompta para qualquer pergunta, e resolução para qualquer problema. Sustentava correspondencia activa com o Gun-Club ou com a fabrica de Goldspring, aguardando-lhe as ordens, no molhe de Hillisboro, o _Tampico_, sempre com as fornalhas accesas e o vapor sob pressão, a toda a hora do dia e da noite. Saiu Barbicane no 1.^o de novembro de Tampa-Town com um destacamento de trabalhadores, e já no dia seguinte se erguia em volta de Stone's-Hill uma cidade de casas mechanicas, que cercaram de palissadas, e em poucos dias, em relação a movimento e actividade, parecia uma das grandes cidades da União. A vida foi ali regulada disciplinarmente, e deu-se começo aos trabalhos em perfeita ordem. A natureza do terreno fôra já reconhecida por via de sondagens cuidadosamente praticadas, e pôde-se dar começo á excavação a 4 de novembro. N'aquelle dia convocou Barbicane para uma reunião todos os chefes de officina, e disse-lhes: «Meus amigos, é conhecido de vós todos o motivo por que vos reuni n'esta região selvatica da Florida. Trata-se de fundir um canhão de nove pés de diametro interior, com seis pés de espessura de parede, e dezenove pés e meio no revestimento exterior de pedra; em summa, o que é necessario excavar, é, por consequencia, um poço de diametro de sessenta pés e de novecentos pés de profundidade. Mais. Esta obra momentosa ha de estar concluida dentro de oito mezes; tendes portanto dois milhões quinhentos e quarenta e tres mil e quatrocentos pés cubicos de terreno a extrahir, em duzentos e cincoenta e cinco dias, isto é, em numeros redondos, dez mil pés cubicos de desaterro por dia. Esta obra que nem difficuldade poderia dizer-se para mil operarios que trabalhassem á sua vontade e com os movimentos perfeitamente desembaraçados, ha de ser muito mais ardua no espaço relativamente apertado em que tendes de trabalhar. Entretanto, já que tal trabalho tem de fazer-se, feito ha de ser, e conto tanto com a vossa habilidade, como com a vossa coragem.» Ás oito horas da manhã deu-se a primeira enxadada no terreno da Florida, e desde aquelle instante nem um só momento esteve ocioso o valente ferro nas mãos dos mineiros. Os operarios revezavam-se de seis em seis horas. A operação, aindaque collossal, não ia alem do limite das forças humanas. Bem longe d'isso. Quantos trabalhos ha de mais real difficuldade, e nos quaes é necessario combater frente a frente os elementos, em que se tem obtido bom resultado! Restringindo-se a obras analogas, bastará citar o _Poço do padre Joseph_, construido perto do Cairo pelo sultão Saladin, e em tempos em que ainda não havia machinas que centuplicassem a força humana, poço que alcança até ao nivel do Nilo, a trezentos pés de profundeza! E aquell'outro poço aberto em Coblentz pelo margrave João de Bade, que entra seiscentos pés pela terra dentro! Pois bem! em summa, aqui o que havia a fazer? Triplicar essa profundidade, mas em largura decupla, circumstancia que aliás tornava mais facil a perfuração! Por estas rasões não havia contramestre nem mesmo simples operario que tivesse duvidas ácerca do bom exito da operação. Houve uma importante decisão tomada pelo engenheiro Murchison, de accordo com o presidente Barbicane, que permittiu ainda maior rapidez no andamento dos trabalhos. Fôra estipulado n'um dos artigos do contrato que a Columbiada havia de ser apertada por arcos de ferro forjado e batido quente. Era luxo de precauções inuteis, porque o colossal machinismo podia evidentemente dispensar os taes anneis compressores. Desistiu-se portanto de tal clausula, e d'ahi veiu grande economia de tempo, porque se tornou então possivel empregar o novo systema de excavação, já agora adoptado na construcção de todos os póços, e por meio do qual se vae fazendo a obra de pedra e cal simultaneamente com a brocagem. Graças a este processo extremamente simples, já não é necessario aguentar as terras com estroncas; é a parede construida que as aguenta com resistencia inabalavel, e que ao mesmo tempo vae descendo pelo proprio peso. Esta manobra não devia começar senão quando o alvião tivesse chegado á parte solida do terreno. A 4 de novembro, cincoenta operarios excavaram mesmo no centro do recinto da estacada, isto é, na parte mais alta de Stone's-Hill, uma abertura circular de sessenta pés de diametro. A primeira camada que encontrou o alvião era uma especie de terra vegetal preta, e tinha seis pollegadas de espessura. Seguiram-se uns dois pés de areia fina, que se guardou com cuidado, porque tinha de servir para a feitura do molde interno. Depois da areia appareceu argilla branca, bastante compacta, similhante aos marnes de Inglaterra, acamada na espessura de quatro pés. Faiscou por fim o ferro das picaretas de encontro á camada dura do terreno, especie de rocha composta de conchas petrificadas, muito secca, muito solida e ultima que até a final o ferro encontrou. N'estas alturas tinha a abertura seis pés e meio de fundo, e deu-se começo á obra de pedra e cal. Construiu-se no fundo da excavação uma _roda_ de madeira de carvalho, especie de disco bem cavilhado e de solidez a toda a prova; era furada no centro, e a abertura tinha diametro igual ao diametro exterior da Columbiada. Em cima d'esta roda é que vieram assentar as primeiras bases da obra de pedra e cal, cujas pedras estavam ligadas com inflexivel tenacidade por cimento hydraulico. Feito o revestimento interno, da circumferencia para o centro, ficaram os operarios encerrados n'um poço de vinte e um pés de largura. Acabada esta parte da obra, volveram os mineiros á picareta e alvião. Começaram a atacar a rocha mesmo por baixo da roda, com o cuidado de a ir sempre aguentando em _tins_[79] extremamente resistentes. Sempre que o buraco alcançava mais dois pés, tiravam-se successivamente os _tins_; descia a roda a pouco e pouco e em cima d'ella o massiço annular de pedra e cal, na camada superior do qual trabalhavam sem descanso os pedreiros, deixando regularmente distribuidos respiradouros por onde haviam de saír os gazes durante a operação da fundição. [Figura: A fundição (pag. 137).] Aquelle genero de trabalho exigia da parte dos operarios extrema habilidade e constante attenção; mais de um foi gravemente e até mortalmente ferido pelos estilhaços de pedra, mas nem por isso affrouxou a actividade um só instante, quer de dia quer de noite: de dia, á luz do sol que, mezes depois, irradiava noventa e nove graus[80] de calor por sobre aquellas calcinadas planuras; de noite, ao clarão de jactos de luz electrica. [Figura: Tampa-Town depois da operação (pag. 141).] O ruido da picareta batendo na rocha viva, as detonações das minas, o estridor das machinas, os turbilhões de fumo espalhados no ar, envolviam então Stone's-Hill n'um circulo tal de terror, que nem manadas de bufalos, nem destacamentos de seminolas se atreveram a transpo-lo. Entretanto iam proseguindo os trabalhos com toda a regularidade, e os guindastes a vapor tornavam rapida a safa do aterro e entulho; obstaculos inesperados poucos, e das difficuldades previstas todos se foram saíndo com habilidade. Decorrido o primeiro mez tinha o poço chegado á profundidade de antemão calculada em proporção do praso, isto é, a cento e doze pés. Em dezembro era duplicada e em janeiro triplicada a altura. No decurso do mez de fevereiro tiveram os trabalhadores que lutar com um lençol de agua que surdiu através da crusta de terra. Foi necessario recorrer a poderosas bombas e a apparelhos de ar comprimido para estancar as aguas e poder assim betumar o orificio das nascentes, como quem veda a abertura por onde um navio faz agua. Por fim sempre conseguiram vencer-se as malditas correntes. No entretanto, em virtude da pouca consistencia do terreno, a roda cedeu em parte e houve um desabamento parcial. Imagine-se qual seria a espantosa impulsão d'aquelle disco de pedra e cal de setenta e cinco toezas de altura! O accidente custou a vida de alguns operarios. Tiveram de se perder tres semanas a escorar e concertar o revestimento de pedra e a tornar a pôr a roda nas condições de solidez primitiva. Mas, graças á habilidade do engenheiro e á potencia das machinas empregadas, volveu ao prumo a edificação, por momentos em risco, e os trabalhos de perfuração continuaram. Nenhum outro incidente interrompeu o andamento regular da obra, e a 10 de junho, vinte dias antes de expirarem os prasos fixados por Barbicane, tinha o poço, completamente revestido do seu paramento de pedras, attingido a altura de novecentos pés. No fundo assentava a obra de pedra e cal n'um cubo massiço de trinta pés de espessura; no limite superior vinha nivelar com o terreno. Barbicane e os socios do Gun-Club felicitaram cordialmente o engenheiro Murchison; aquelle trabalho de cyclopes fôra realmente concluido em extraordinarias condições de brevidade. No decurso dos oito mezes que levou a obra não deixára Barbicane um só instante Stone's-Hill; seguindo sempre de perto as obras de perfuração, não lhe dava menos constante cuidado o bem-estar e a saude dos operarios. Tão feliz que conseguiu evitar as epidemias que são vulgares nas grandes agglomerações de homens e tão fataes em regiões, como aquella, expostas a todos os influxos do tropico. Verdade é que muito operario pagou com a vida as imprudencias inherentes a tão arriscados trabalhos; mas desgraças d'essa ordem, aliás lamentaveis, não é possivel evita-las, são pormenores com que pouco se preoccupam os americanos. Mais cuidado lhes dá a humanidade em geral do que cada individuo em particular. Barbicane, todavia, professava, por excepção, doutrinas contrarias, a que em todas as occasiões dava applicação. E por esta rasão, graças aos cuidados d'elle, á intelligencia que demonstrou e á intervenção que tinha em todos os casos difficeis, á prodigiosa e caritativa sagacidade que soube desenvolver, a media das catastrophes não excedeu o que costuma succeder nos paizes d'aquem mar, ainda nos que são citados pelo luxo de precauções, em França, por exemplo, em que se conta, termo medio, com um accidente por cada duzentos mil francos de obras. CAPITULO XV A FESTA DA FUNDIÇÃO No decurso dos oito mezes que levou a operação da perfuração, tinham-se simultaneamente, e com grande rapidez, realisado os trabalhos preparatorios da fundição; bem surprehendido ficaria qualquer forasteiro, que por aquella occasião viesse a Stone's-Hill, com o espectaculo que se lhe havia de apresentar diante dos olhos. Em disposição circular, em torno do poço como centro, e a seiscentas jardas d'elle, erguiam-se mil e duzentos fornos de reverberação, cada um de seis pés de largura, e separados uns dos outros por um intervallo de meia toeza. A linha, que contornava os mil e duzentos fornos, tinha duas milhas[81] de comprimento. Eram todos construidos pelo mesmo modelo, de chaminé alta e quadrangular, e produziam effeito extremamente singular. J.-T. Maston achava soberba aquella disposição architectonica, que lhe trazia á lembrança os monumentos de Washington. Para esse é que não havia nada mais bello, nem mesmo na Grecia, «onde aliás, segundo elle proprio confessava, nunca tinha posto os pés». Deve o leitor estar lembrado que, na terceira sessão da commissão, se decidira que a Columbiada havia de ser de ferro fundido, e em especial de ferro fundido gris. E com rasão, porque o ferro em taes circumstancias tem maior tenacidade e ductilidade e é mais macio, mais facil de polir e apropriado para todas as operações de molde, e ainda porque, tratado pelo carvão mineral, é de qualidade superior para todas as obras de grande resistencia, taes como canhões, cylindros de machinas a vapor, prensas hydraulicas, etc. Mas raras vezes com uma só fusão se consegue obter ferro fundido bastante homogeneo; na segunda fusão é que elle se refina e purifica, abandonando os ultimos depositos terrosos. Por este motivo, já o minerio de ferro, antes de ser expedido para Tampa-Town, fôra transformado em carbonato, submettendo-o nos altos fornos de Goldspring ao contacto com carvão e silicium levados a uma elevada temperatura[82]. Depois d'esta primeira operação é que o metal foi mandado para Stone's-Hill. Mas como se tratava de cento e trinta e seis milhões de libras de ferro fundido, massa cuja expedição pelos caminhos de ferro havia de ficar excessivamente cara, só o preço do transporte vinha a dobrar o preço do material. Pareceu portanto preferivel fretar navios em New York e carrega-los de ferro fundido em barra; foram necessarias nada menos de sessenta e oito embarcações de mil toneladas, verdadeira esquadrilha, que a 3 de maio largou das paragens de New York, tomou a via do oceano, prolongou-se com as costas da America, embocou pelo canal de Bahama, dobrou a ponta da Florida e, entrando a 10 do mesmo mez na bahia do Espirito Santo, veiu largar ferro, sem avaria, no porto de Tampa-Town. Ahi se fez a descarga dos navios para os wagons da via ferrea de Stone's-Hill, e pelo meado de janeiro estava toda aquella enorme massa de metal no logar para que fôra destinada. Facilmente se concebe que não eram de mais mil e duzentos fornos para liquefazer simultaneamente sessenta mil toneladas de ferro fundido. Cada forno podia conter proximamente quatorze mil libras de metal, e todos tinham sido construidos pelo modelo dos que tinham servido para fundir o canhão Rodman, que eram de fórma trapesoidal e muito baixos de tecto. A fornalha e a chaminé eram nos extremos oppostos do forno, por fórma que em toda a extensão d'elle havia a mesma temperatura. As paredes dos fornos eram construidas de tijolo refractario, e encerravam apenas uma grelha para fazer arder o carvão mineral e um crysol chato para collocar as barras de ferro, inclinado por um angulo de vinte e cinco graus para deixar escorrer o metal em fusão para as caldeiras destinadas a recebe-lo; d'estas caldeiras conduziam-no mil e duzentas caleiras convergentes para o poço central. No dia seguinte áquelle em que finalisaram as obras de pedra e as de perfuração, fez Barbicane dar começo á construcção do molde interno. O caso estava em erguer no centro do poço e na direcção do eixo d'elle, um cylindro de novecentos pés de altura e nove de largura, que enchesse exactamente o espaço reservado para a alma da Columbiada. Foi este cylindro feito de areia e barro argilloso de mistura com palha e feno. O intervallo que ficava entre o molde interno e o revestimento de pedra e cal havia de preenche-lo o metal fundido, que vinha assim a formar em torno do molde uma parede de seis pés de espessura. Para manter em equilibrio o cylindro, foi necessario reforça-lo com gatos de ferro e aguenta-lo de distancia a distancia com espeques chumbados no revestimento interno de pedra, o que não apresentava inconveniente algum, porque, depois da fundição, haviam de ficar os espeques como que perdidos no grosso da massa de metal. Concluiu-se esta operação a 8 de julho, e fixou-se o dia seguinte para a fundição. «Que bella ceremonia ha de ser a da festa da fundição, disse J.-T. Maston ao amigo Barbicane. --De certo, respondeu Barbicane, mas festa publica é que não! --Como assim! pois não haveis de mandar abrir as portas d'este recinto a quem quer que venha? --D'essa me livrarei eu, Maston; a fundição da Columbiada é operação delicada, por não dizer perigosa, e prefiro realisa-la á porta fechada. Quando o projectil largar, quantas festas quizerem, até lá nada.» E o presidente tinha rasão; a operação podia apresentar perigos imprevistos, a que uma grande affluencia de espectadores estorvaria de occorrer. Era mister conservar inteira liberdade de movimentos. Por consequencia a ninguem se deu entrada no recinto, excepto a uma delegação dos socios do Gun-Club que, expressamente para assistir á festa, fizera jornada até Tampa-Town. Figuravam n'ella, entre outros, o fogoso Bilsby, Tom Hunter, coronel Blomsberry, major Elphiston, general Morgan e _tutti quanti_, tomavam a fundição da Columbiada como negocio seu pessoal. J.-T. Maston tinha-se feito cicerone d'estes, e não lhes perdoou nem o mais insignificante dos pormenores; levou-os a toda a parte: aos armazens, ás officinas, por entre as machinas, e até os obrigou a fazer visita aos mil e duzentos fornos um por um. Quando chegaram a mil e duzentos já não tinham alma para mais. A fundição estava fixada para o meio dia em ponto, e já de vespera ficára cada forno carregado com cento e quatorze mil libras de metal em barras dispostas em pilhas encruzadas, para que o ar quente podesse circular em liberdade por entre ellas. Desde pela manhã que as mil e duzentas chaminés arrojavam para a atmosphera torrentes de chammas, e que o solo era agitado por surdas trepidações. Havia a queimar tantas libras de hulha, quantas eram as libras de metal que se íam derreter. Eram portanto sessenta e oito mil toneladas de carvão que arremessavam por diante do disco solar um espesso véu de fumo negro. Dentro em pouco tornou-se o calor intoleravel dentro do circulo dos fornos, cujos roncos pareciam trovões; a tudo isto vinha juntar-se o soprar continuo de potentes ventiladores que saturavam de oxygenio todos aquelles focos incandescentes. Dependia essencialmente o bom exito da operação da rapidez. A um signal dado por um tiro de peça deviam todos os fornos simultaneamente dar saída ao metal em fusão e vasarem-se completamente. Tomadas estas disposições, esperavam, tanto os chefes como os operarios, com impaciencia misturada de boa dóse de emoção, o instante prefixado. Já não estava mais ninguem no recinto, e todos os contra-mestres fundidores estavam a postos, cada um junto a uma das aberturas por onde o ferro em fusão havia de entrar no molde. Barbicane e os collegas assistiam á operação situados n'uma eminencia proxima. Diante d'elles estava uma peça de artilheria prompta a dar fogo ao primeiro signal dado pelo engenheiro. Alguns minutos antes do meio dia começaram a correr as primeiras gotas de metal, encheram-se pouco e pouco as caldeiras, e quando o metal chegou a completa liquefacção, deixaram-no assentar por alguns instantes para facilitar a separação das substancias estranhas. Soou meio dia, e no mesmo instante ribombou o canhão arremessando pelos ares o fulvo relampago. Abriram-se a um tempo as mil e duzentas aberturas, e alastraram-se na direcção do poço central mil e duzentas serpes de fogo, desenrolando-se em anneis incandescentes. Ali foram precipitar-se com temeroso estrepito, na profundidade de novecentos pés. O espectaculo era magnifico e para impressionar. Tremia a terra, e aquelle mar de metal em fusão arrojando ao céu turbilhões de fumo, ao mesmo tempo volatilisava a humidade do molde e a expellia pelos respiradouros do revestimento de pedra, sob a fórma de impenetraveis vapores. Desenrolavam-se aquellas nuvens artificiaes em espiraes espessas e erguiam-se para o zenith até quinhentas toezas de altura. Algum selvagem errante para alem dos limites do horisonte podia crer que se estava formando alguma nova cratéra nos seios da terra floridense, e comtudo nem era aquillo erupção, nem tromba, nem tempestade, nem luta de elementos, nem nenhum dos phenomenos terriveis que só a natureza é capaz de produzir! Não! O homem é que tinha dado o ser áquelles avermelhados vapores, áquellas chammas gigantescas e dignas de qualquer vulcão, áquellas oscillações estrondosas similhantes ao sacudir dos tremores de terra, áquelles mugidos rivaes dos furacões e das tempestades, e a mão do homem é que precipitára um Niagara inteiro de metal em fusão n'um abysmo tambem por mãos humanas cavado. CAPITULO XVI A COLUMBIADA E teria tido feliz resultado a operação da fundição? O caso só podia apreciar-se por conjecturas. Entretanto tudo levava a crer que o resultado fôra bom, visto como o molde absorvêra a massa inteira do metal fundido nos fornos. Fosse lá como fosse, por muito tempo havia de ser impossivel verificar a cousa directamente. Effectivamente, quando o major Rodman fundiu o seu canhão de cento e sessenta mil libras de peso, nada menos de quinze dias levou o metal a arrefecer. Quanto tempo então haveria de furtar-se ás vistas de seus admiradores, coroada de turbilhões de fumo e defendida pelo seu intenso calor, a Columbiada monstro? Era cousa difficil calcula-lo. Durante esse lapso de tempo passou por uma prova real a paciencia dos socios do Gun-Club. Mas não havia outro remedio. J.-T. Maston ia ficando assado por excesso de dedicação. Quinze dias depois da fundição ainda se erguia para o céu immenso pennacho de fumo, e ainda o chão queimava os pés n'um raio de duzentos passos em volta do cume de Stone's-Hill. Passaram-se dias e dias, decorreram semanas e semanas. Não havia meio de arrefecer o immenso cylindro; era até impossivel approximar-se d'elle. Era força esperar, e os socios do Gun-Club mordiam-se de impacientes. «Estamos já a 10 de agosto, disse uma bella manhã J.-T. Maston. Temos apenas quatro mezes d'aqui até 1 de dezembro! Sacar o molde interno, calibrar a alma da peça, carregar a Columbiada, tudo está por fazer! Nada, já não temos tempo para nos apromptar! Nem ainda a gente se póde approximar do canhão! Pois elle nunca ha de acabar de arrefecer. Isso é que era uma caçoada cruel! Tentavam todos, mas debalde, moderar o impaciente secretario; só Barbicane não dizia palavra, mas o silencio d'este occultava surda irritação. Ver-se absolutamente detido por um obstaculo que só o tempo podia vencer, e então o tempo, que é implacavel inimigo em taes circumstancias, e estar á discrição do inimigo, que era tão duro para aquella gente bellicosa. Entretanto as observações quotidianas denunciavam certa mudança no estado do solo. Por volta de 15 de agosto tinham diminuido notavelmente em intensidade e espessura os vapores projectados para o céu. Dias depois já o terreno exhalava apenas ligeira fumaça, ultimo alento do monstro encerrado no seu tumulo de pedra. Pouco e pouco vieram a diminuir as oscillações do solo, e o circulo de calorico estreitou-se; approximaram-se os espectadores mais impacientes; n'um dia conseguiram avançar duas toezas, no seguinte quatro, e, a 23 de agosto Barbicane, os collegas e o engenheiro, poderam finalmente tomar logar mesmo em cima do jacto solidificado de ferro fundido que nivelava com o vertice de Stone's-Hill, logar seguramente muito hygienico, porque não era possivel ter lá os pés frios. «Até que emfim!» exclamou o presidente do Gun-Club, soltando immenso suspiro de satisfação. Recomeçaram os trabalhos no mesmo dia. Tratou-se immediatamente de extrahir o molde interno para desembaraçar a alma da peça; alvião, picareta e ferramenta de brocar, tudo trabalhou sem descanso; o barro argilloso e a areia tinham adquirido extrema consistencia sob a acção do calor; mas com auxilio de machinas, conseguiu-se vencer aquelle mixto ainda inflammado pelo contacto das paredes de ferro fundido; o material extrahido safaram-n'o com rapidez carros movidos a vapor, e tanto fizeram, tanto ardor houve no trabalho, Barbicane apertou tanto com os trabalhadores, e tão fortes argumentos empregou, sob fórma de dollars, que, a 3 de setembro, tinha desapparecido o ultimo vestigio de molde. Começou desde logo a operação da calibragem; installaram-se sem demora os machinismos adequados que faziam mover com rapidez potentes brocas de polir, cujo gume cortante mordia nas rugosidades do ferro fundido. Poucas semanas depois estava exactamente cylindrica a superficie interna do tubo, e a alma da peça perfeitamente polida. [Figura: Festim na Columbiada (pag. 146).] Finalmente, no dia 22 de setembro, menos de um anno depois da communicação Barbicane, o enorme machinismo, rigorosamente calibrado, n'uma exactissima posição vertical verificada por via de instrumentos delicados, ficou prompto para funccionar. Faltava só esperar pela Lua, mas essa certo era que não havia de falhar ao ajustado encontro. [Figura: O presidente Barbicane á sua janella (pag. 151).] A alegria de J.-T. Maston não tinha limites; esteve até por pouco a dar uma horrorosa quéda, quando intentava penetrar com a vista a profundidade do tubo de novecentos pés. Se não lhe acudíra Blomsberry com o braço direito, que o digno coronel por fortuna conservára, o secretario do Gun-Club teria, qual novo Erostrato, encontrado a morte nas profundezas da Columbiada. Estava pois terminado o canhão; nem já era permittido ter duvidas ácerca de sua perfeita execução; n'estes termos, a 6 de outubro, o capitão Nicholl, com vontade ou sem ella, desempenhou-se para com o presidente Barbicane, e este inscreveu no seu livro de contas e na columna das receitas, a quantia de dois mil dollars. Devemos suppor que a furia do capitão chegou ao ultimo extremo. No entretanto havia ainda ajustadas mais tres apostas de tres, quatro e cinco mil dollars, e comtantoque o capitão ganhasse duas fazia negocio, que sem ser já excellente, ainda não era de todo mau. Porém o dinheiro nem sequer lhe entrava nos calculos; o bom exito obtido pelo rival que conseguira fundir um canhão, a que nem chapas de dez toezas de espessura poderiam resistir, é que fôra para Nicholl terrivel golpe. Desde 23 de setembro que se tornára francamente accessivel ao publico o recinto de Stone's-Hill. Qual foi a affluencia de vizitantes facilmente se comprehenderá. E na realidade, convergia de todos os pontos dos Estados Unidos para a Florida uma quantidade de curiosos sem conta. A cidade de Tampa tinha augmentado prodigiosamente no decurso d'aquelle anno inteiramente consagrado ás obras do Gun-Club, e contava então cento e cincoenta mil almas. A cidade que começára por entrelaçar o forte Brooke n'uma rede de ruas, estendia-se agora por sobre a lingueta de terra que separa os dois molhes da bahia do Espirito Santo; bairros novos, novas praças, uma floresta inteira de casas tinham como que brotado d'aquellas praias ainda ha pouco desertas, pela intensidade do calor do sol americano. Organisaram-se companhias para construir igrejas, escolas e habitações particulares, e em menos de um anno estava a cidade dez vezes maior. É bem sabido que o yankee nasce commerciante; para onde quer que o arremesse o destino, da zona gelida á zona torrida, hão de exercer-se-lhe com utilidade os instinctos de negocio. Por esta rasão os simples curiosos, a gente que viera á Florida com o unico fito de seguir as operações do Gun-Club, deixou-se arrastar para operações commerciaes logoque se achou installada em Tampa. Os navios fretados para transportar o material e os operarios tambem tinham trazido ao porto um grau de actividade sem igual, e dentro em pouco muitos outros navios de todas as fórmas e tonelagens sulcaram a bahia e os dois molhes; estabeleceram-se vastos estabelecimentos de armador e escriptorios de corretor de navios, e a _Shipping-Gazete_ registava todos os dias novas embarcações entradas no porto de Tampa. Ao passo que se iam multiplicando as estradas em torno da cidade, mereceu esta a final ser ligada por via ferrea aos Estados meridionaes da União, em consideração ao prodigioso augmento que se realisára na sua população e commercio. Assentou-se um railway entre a Mabile e Pensacola, o maior arsenal maritimo do sul; e em seguida d'este ponto importante para Tallahassee. D'ali já estava construido um pequeno ramal de via ferrea de vinte e uma milhas de comprimento, que punha em communicação Tallahassee com Saint-Marks, localidade do littoral. Foi este ramal que se prolongou até Tampa-Town, e que na passagem veiu despertar ou dar vida ás regiões adormecidas ou mortas da Florida. Tampa, graças áquelles milagres da industria, devidos á idéa que um bello dia despontára n'um cerebro humano, póde assumir com legitimo fundamento ares de grande cidade. Cognominaram-na _Moon-City_[83]. A capital das Floridas é que soffreu ecclypse total e visivel de todos os logares do globo. Toda a gente comprehenderá agora por que fôra tão grande a rivalidade entre Texas e Florida, e a irritação dos texianos quando viram indeferidas as pretenções que tinham á preferencia do Gun-Club. Com previdente sagacidade tinham os do Texas comprehendido quanto qualquer paiz haveria de ganhar com a experiencia tentada por Barbicane, e de que somma de beneficios havia de vir acompanhado um tal tiro de canhão. Perdia o Texas com a decisão que o desfavorecêra um importante centro de commercio, varios caminhos de ferro e um augmento consideravel de população. Estas vantagens todas iam parar áquella miseravel peninsula floridense, arremessada qual outro marachão entre as ondas do golpho e as vagas do oceano atlantico. Por isso Barbicane partilhava com o general Sant'Anna todas as antipathias dos texianos. Entretanto, apesar de entregue ao furor do commercio e ao ardor da industria, a população nova de Tampa-Town não esqueceu por fórma alguma as interessantes operações do Gun-Club. Pelo contrario. Tomavam todos calor e paixão pelos pormenores mais infimos da obra, pela mais insignificante enxadada. Era um constante vae-vem entre a cidade e Stone's-Hill, uma procissão, ou para melhor dizer, uma romaria. Já podia prever-se que, no dia da experiencia, a agglomeração de espectadores havia de contar-se por milhões, porque já elles de todos os pontos da Terra iam chegando e accumulando-se na estreita peninsula. Emigrava a Europa para a America. Mas, até áquelle ponto, força é dize-lo, pouca e mediocre satisfação tivera a curiosidade dos que, em grande numero, íam chegando. Muita gente esperava assistir ao espectaculo da fundição e só lhe viu o fumo. Era pouco para olhos tão avidos, mas Barbicane não quiz admittir pessoa alguma a presenciar a operação. Em consequencia não faltou quem praguejasse, murmurasse ou por qualquer outra fórma mostrasse descontentamento; censuravam o presidente; accusavam-n'o de absolutismo; declaravam finalmente que o procedimento d'elle era «pouco americano». Ía havendo sedição em volta das palissadas de Stone's-Hill. Barbicane, já se sabe, conservou-se inabalavel na resolução que tomára. Mas desde o momento em que se deu por inteiramente acabada a Columbiada, é que não foi possivel conservar por mais tempo porta fechada; e tambem fechar as portas em tal caso, seria prova de má vontade, ou o que é ainda cousa peior, imprudencia que iria tornar hostil á empreza o sentimento publico. Barbicane mandou portanto abrir as portas do recinto a toda a gente; entretanto inspirado pelo seu espirito pratico, resolveu fazer dinheiro com a curiosidade publica. Já não era pouco contemplar a immensa Columbiada, porém descer-lhe ás profundezas, isso é que se afigurava aos Americanos ser o _non plus ultra_ das felicidades d'este mundo. Nem um só curioso por consequencia deixou de querer experimentar o goso de visitar o interior d'aquelle abysmo de metal. Os espectadores podiam satisfazer a sua curiosidade por meio de apparelhos suspensos de um sarilho a vapor. A cousa fez furor. Mulheres, creanças, velhos, todos tomaram como obrigação penetrar até ao fundo da _alma_ nos mysterios do colossal canhão. Fixou-se o preço da descida em cinco dollars por cabeça. E apesar de ser preço alto, tal foi a affluencia de visitantes, que metteu nas burras do Gun-Club, no decurso dos dois mezes que antecederam a experiencia, perto de dois milhões e quinhentos mil dollars[84]. Escusado é dizer que os primeiros visitantes da Columbiada foram os socios do Gun-Club, vantagem esta justamente reservada para aquella illustre assembléa. Realisou-se esta visita solemne no dia 25 de setembro. Desceu então uma caixa de honra com o presidente Barbicane, J.-T. Maston, major Elphiston, general Morgan, coronel Blomsberry, engenheiro Murchison e outros socios de distincção do celebre Club. Ao todo seriam uns dez. Fazia ainda um calor menos mau no fundo do comprido tubo de metal! Mal se podia respirar! Mas que alegria! que contentamento! Estava mesa posta para dez convivas em cima do massiço que aguentava a Columbiada, e o interior d'esta illuminado _a giorno_, por um jacto de luz electrica. Numerosas e delicadas iguarias, que pareciam descer do céu, vieram successivamente collocar-se em frente dos convivas, e correram com profusão os mais finos vinhos de França durante o esplendido banquete servido a novecentos pés debaixo da terra. O festim correu extremamente animado e até extremamente ruidoso; cruzavam-se numerosos os _toasts_; bebeu-se em honra do globo terrestre, do seu satellite, do Gun-Club, da União, da Lua, de Phoebea, de Diana, de Seléne, do astro das noites, e finalmente «do pacifico correio feminino do firmamento!» Tantos foram os hurrahs, repercutidos em ondas sonoras dentro d'aquelle immenso tubo acustico que chegaram á extremidade d'elle qual trovão, e a multidão acampada em torno de Stone's Hill, unia-se pelo coração e pelos gritos aos dez convivas soterrados no fundo da gigantesca Columbiada. J.-T. Maston nem já podia ter mão em si; e é ponto difficil de averiguar o que é que elle fez em maior escala, se gritar e gesticular, se beber e comer. Em todo o caso, o que elle não largava era o logar, nem a troco de um imperio. «Não, aindaque o canhão estivera carregado, escorvado, prompto a dar fogo por instantes, e a arremessa-lo feito em estilhas aos espaços planetarios». CAPITULO XVII UM DESPACHO TELEGRAPHICO Estavam, póde assim dizer-se, concluidas as grandes obras emprehendidas pelo Gun-Club, e no entretanto ainda tinham de decorrer dois mezes antes de chegar o dia em que o projectil havia de largar vôo para a Lua. Dois mezes, que á impaciencia universal haviam de parecer dois annos! Até então tinham tido reproducção na imprensa diaria até os mais infimos pormenores da operação, e os jornaes eram devorados com olhos avidos e ardentes; mas era de temer que d'ora ávante aquelle «dividendo de noticias interessantes», distribuido até então ao publico, diminuisse notavelmente; e todos se assustavam com a idéa de não terem já de receber a respectiva quota de emoções quotidianas. Pois nada d'isto succedeu; um incidente, o mais extraordinario, o mais incrivel, o mais inverosimil dos incidentes, veiu de subito fanatisar os espiritos anhelantes, e lançar novamente o mundo inteiro sob a influencia de uma sobrexcitação pungente. Certo dia, 30 de setembro, ás tres horas e quarenta e sete minutos da tarde, chegou com direcção ao presidente Barbicane um telegramma transmittido pelo cabo submarino immerso entre Valentia (na Irlanda), Terra Nova e a costa americana. O presidente Barbicane rasgou o sobrescripto, leu o despacho, e, apesar da faculdade que tinha em alto grau de dominar-se, empallideceram-lhe os labios, e turvou-se-lhe a vista com a leitura das vinte palavras do telegramma. Eis o texto do tal despacho, que na actualidade figura entre os documentos do archivo do Gun-Club: «França, Paris, 30 de setembro, ás quatro horas da manhã--Barbicane, Tampa, Florida, Estados Unidos.--Substituir obuz espherico por projectil cylindro-conico. Partirei dentro. Chego pelo vapor _Atlanta_.--_Miguel Ardan_.» CAPITULO XVIII O PASSAGEIRO DO ATLANTA Se aquella nova fulminante, em vez de ter voado pelo fio electrico, tivera chegado simplesmente pelo correio, fechada e lacrada; se os empregados telegraphicos da França, da Irlanda, da Terra Nova e da America não estivessem, por necessidade de officio, no segredo do telegrapho, certamente Barbicane nem por um instante teria hesitado. Calava-se não só por prudencia, mas para não desacreditar a propria obra. Era bem possivel que sob a fórma de telegramma ali se, encobrisse uma caçoada, demais a mais vindo o telegramma de um francez. Por ventura era de crer que houvesse homem bastantemente ousado para conceber sequer o pensamento de uma viagem tal? E, ainda no caso de existir tal homem, não seria porventura um louco, mais no caso de se encerrar n'uma gaiola do que n'uma bala? Porém o texto do telegramma era de certo já conhecido, porque os apparelhos de transmissão electrica são por sua propria natureza pouco discretos, e a proposta de Miguel Ardan corria já seguramente pelos differentes estados da União. Consequentemente Barbicane não tinha motivo algum para se calar; portanto reuniu os collegas que estavam em Tampa-Town, e sem dar mostra do que lhe ía no pensamento, sem discutir o maior ou menor credito de que o telegramma era merecedor, leu-lhes friamente o laconico texto. «É impossivel! Inverosimil! Pura chalaça! Mangaram comnosco! Ridiculo! Absurdo!» Em poucos minutos ouviu-se ali uma collecção completa de todas as expressões que servem para exprimir duvida, incredulidade ou qualificar a tolice e a loucura, e com acompanhamento de gestos usuaes em taes casos. Todos sorriam, riam, encolhiam os hombros ou desatavam ás gargalhadas, cada um segundo a respectiva disposição e genio. J.-T. Maston foi o unico que teve uma saída soberba: «E não é má idéa, não!» --É verdade, respondeu o major; mas se é permittido ter de vez em quando idéas d'essas, é só com a condição de nem por sonhos pensar em leva-las á execução. --E porque não? replicou com vivacidade o secretario do Gun-Glub, já prompto para discutir. Mas não quizeram pica-lo mais. Entretanto já o nome de Miguel Ardan corria de bôca em bôca pela cidade de Tampa. Forasteiros e indigenas olhavam-se, interrogavam-se e mofavam, não do europeu, especie de mytho ou individualidade chimerica, mas de J.-T Maston, que tinha chegado a acreditar na existencia de tal personagem lendario. Quando Barbicane propozera arremessar um projectil á Lua todos acharam o emprehendimento natural, praticavel, pura questão de balistica! Mas offerecer-se um ente racional para tomar passagem dentro do projectil e tentar aquella viagem inverosimil, isso lá era proposta de phantasia, zombaria, caçoada, ou, querendo usar de um termo que tem traducção exacta e precisa na linguagem familiar franceza, _humbug_![85] Até á noite sem interrupção durou a risota, podendo até affirmar-se que a União inteira desatou a um tempo n'uma casquinada de riso inextinguivel, o que aliás não está lá muito nos habitos de um paiz em que até as emprezas mais claramente impossiveis encontram com facilidade panegyristas, adeptos e partidarios. Todavia a proposta de Miguel Ardan, como succede a toda a idéa nova, não deixou de dar que fazer a certos espiritos. A cousa sempre vinha alterar o curso das emoções habituaes. «Ninguem pensára em tal!» E o incidente por sua mesma estranheza em breve se tornou como que em pesadelo geral. Caso é que já n'elle pensavam. Quantas cousas se negam na vespera, e que o dia seguinte vem transformar em realidades! E porque é que tal viagem se não havia de vir a fazer mais tarde ou mais cedo? Em todo o caso, o homem que assim queria arriscar a pelle era forçosamente doido, e decididamente já que o projecto que sonhára não podia ser tomado a serio, melhor era ter-se calado, do que vir inquietar um povo inteiro com tão ridiculos devaneios. Mas, e antes de tudo; acaso tal personagem existia realmente? Magna questão! Aquelle nome de «Miguel Ardan» já não era inteiramente desconhecido na America! Senão que pertencia a um europeu muito citado por seus ousados emprehendimentos. De mais a mais aquelle telegramma enviado atravez das profundezas do Atlantico, aquella indicação positiva do navio em que o francez dizia ter já tomado passagem, e a da data proxima em que havia de chegar, tudo eram circumstancias que davam á proposta certo caracter de verosimilhança. O que todos desejavam era uma solução clara e positiva que lhes socegasse o espirito. Pouco a pouco reuniram-se em grupos os individuos isolados; os grupos foram-se condensando por influencia da curiosidade, como os atomos se aggregam em virtude da attracção mollecular, e a final vieram a transformar-se em multidão compacta, que tomou em direitura á morada do presidente Barbicane. Este, desde que chegára o telegramma, não dera por fórma alguma a conhecer o que d'elle pensava; deixára correr a opinião de J.-T. Maston, sem manifestar approvação nem censura; estava mettido ao canto, e na idéa de esperar pelos acontecimentos, mas com que elle não contava era com a impaciencia publica; por isso viu com olhos de pouca satisfação accumular-se-lhe debaixo das janellas a população de Tampa. Em breve o forçaram a mostrar-se ao publico, mil murmurios e vociferações. É de ver que o presidente tinha todos os deveres e portanto todos os incommodos attributos da celebridade. Logo que Barbicane appareceu reinou silencio na multidão e um cidadão que tomou a palavra dirigiu-lhe, sem mais rodeios, a seguinte pergunta: «O personagem designado no telegramma pelo nome de Miguel Ardan, seguiu ou não viagem para a America? --Meus senhores, respondeu Barbicane, tanto o sei eu como vós outros. --Pois é necessario sabe-lo, exclamaram algumas vozes impacientes. --O tempo é que nos ha de desenganar, respondeu friamente o presidente. --Ao tempo não assiste direito para conservar um paiz inteiro em suspensão, replicou o orador. E os planos do projectil já se mandaram modificar, como se pede no telegramma? [Figura: Michel Ardan (pag. 154).] --Ainda não, meus senhores; mas, todos têem muita rasão, é necessario desenganarmo-n'os; o telegrapho foi que causou todas estas emoções, pois seja o telegrapho quem complete as noticias que trouxe. --«Ao telegrapho! ao telegrapho!» bradou a multidão. [Figura: O meeting (pag. 161).] Barbicane desceu de casa, e tomando á frente d'aquelle immenso ajuntamento dirigiu-se para a repartição da administração dos telegraphos. Poucos minutos depois enviava-se um telegramma ao syndico dos corretores de navios de Liverpool em que se lhe pedia resposta ás seguintes perguntas: «Que especie de navio é o _Atlanta_? «Quando é que largou esse navio da Europa? «Estaria a bordo um francez chamado Miguel Ardan?» Duas horas depois recebia Barbicane esclarecimentos por tal fórma precisos, que nem deixavam logar á menor duvida. «O paquete _o Atlanta_, de Liverpool, fez-se ao mar no dia 2 de outubro, fazendo-se de véla para Tampa-Town; a bordo ia um francez, inscripto no livro dos passageiros com o nome de Miguel Ardan.» Quando o presidente viu assim confirmado o conteúdo do primeiro telegramma, brilharam-lhe os olhos em subita chamma, cerraram-se-lhe violentamente os punhos, e houve até quem o ouvisse murmurar: Então, sempre é verdade! sempre é possivel! existe esse francez! e dentro em quinze dias ha de estar aqui! Mas é, por certo, um louco! um cerebro escandecido!... Nunca consentirei...» E apesar d'isso, n'aquella mesma noite já escrevia á casa Breadwill e C.^a, para lhe pedir que suspendesse até nova ordem a fundição do projectil. Relatar a emoção que se apossou da America inteira; como o effeito da communicação Barbicane foi excedido no decuplo; o que disseram os jornaes da União, por que modo acceitaram a nova e em que rythmo contaram a chegada do heroe do velho continente; pintar a febril agitação, em que todos viviam contando as horas, os minutos e os segundos; dar idéa mesmo longiqua, da pesada obsessão que se apoderou de todos os cerebros dominados por um pensamento unico; mostrar como todas as occupações cederam a uma unica preoccupação; os trabalhos parados, o commercio suspenso, navios que estavam promptos a levantar ferro a ficarem ancorados no porto para não faltarem á chegada do _Atlanta_, os comboios a chegarem cheios e a saírem vasios, a bahia do Espirito Santo sulcada sem cessar por _steamers_, _packets-boats_, hiates de recreio e _fly-boats_ de todas as dimensões; enumerar os milhares de curiosos que no espaço de quinze dias quadruplicaram a população de Tampa-Town, a ponto de terem de acampar em barracas como um exercito em campanha, é tarefa que excede as forças humanas, e que sem temeridade ninguem poderia emprehender. No dia 20 de outubro, pelas nove horas da manhã, dava o telegrapho semaphorico do canal de Bahama noticia de fumo espesso no horisonte. Duas horas depois um grande _steamer_ trocava com o telegrapho signaes de reconhecimento. Immediatamente foi expedido para Tampa-Town o nome do _Atlanta_. Ás quatro horas dava o navio inglez entrada na bahia do Espirito Santo. Ás cinco passava a barra de Hillisboro a todo o vapor. Ás seis largava ferro no porto de Tampa. Ainda a ancora não tinha mordido no fundo de areia, já quinhentas embarcações estavam em volta do _Atlanta_, e tomavam o _steamer_ de assalto. Barbicane foi o primeiro que saltou ao convez, e que em voz de que debalde tentára occultar a commoção exclamou: «Miguel Ardan!--Presente!» respondeu um individuo que estava no castello de popa. Barbicane, cruzados os braços, com o olhar interrogador e a bôca silenciosa, olhou fito para o passageiro do _Atlanta_. Era este homem de quarenta e dois annos, alto, mas já um tanto curvado, como os cariatides que aguentam nos hombros as sacadas dos balcões. A cabeça volumosa, verdadeira cabeça de leão, sacudia a cada instante a cabelleira ardente que a adornava como verdadeira juba. A cara curta, larga nas fontes, enfeitada por um bigode hirsuto como as barbas de um gato, e com pincelinhos de pellos amarellados que irrompiam mesmo do meio das faces, os olhos redondos e um tanto desvairados, o olhar de myope, completavam-lhe a physionomia eminentemente felina. Mas o nariz era ousadamente modelado, a bôca particularmente humana, a fronte alta, intelligente e sulcada qual campo que nunca esteve de pousio. Finalmente o tronco robustamente desenvolvido e assente a prumo em cima de compridas pernas, os braços musculosos como possantes e bem articuladas alavancas, faziam do europeu um maganão de solida construcção, «feito na forja, que não no cadinho», como diria quem quizesse ir buscar á arte metallurgica termos de comparação. Qualquer discipulo de Lavater ou de Gratiolet encontraria sem difficuldade no craneo e na physionomia do personagem os indicios mais indiscutiveis da combatividade, isto é, da coragem na occasião do perigo, e da tendencia para despedaçar todos os obstaculos; como tambem os da benevolencia e da _maravilhosidade_, instincto que incita certos temperamentos a tomarem-se de paixão pelas cousas sobrehumanas; em compensação era absoluta a carencia das bossas que indicam os instinctos de posse e acquisição, que os phrenologos designam pela palavra _adquisividade_. Para dar o ultimo toque na descripção do typo physico do passageiro do _Atlanta_, convem notar que o fato que usava era largo de fórmas e folgado de cavas. A calça e o _paletot_ eram feitos com tal abundancia de fazenda, que o proprio Miguel Ardan chamava a si mesmo o _mata-panno_; a gravata desapertada, o colleirinho aberto com largueza, deixavam ver o pescoço robusto; dos punhos invariavelmente desabotoados saiam-lhe as mãos febris. Bem se via que era homem que, nem na maior força do inverno, nem na maior força do perigo, havia de ter frio, nem mesmo na raiz do cabello. Nunca estava quieto, no tombadilho do _steamer_, no meio da multidão, de cá para lá, sem nunca parar «navegando sobre as amarras», como dizia a maruja; sempre a gesticular, tratando todos por tu e roendo as unhas com nervosa avidez. Era um d'aquelles typos originaes que o Creador inventa n'um momento de phantasia, quebrando-lhe desde logo o molde. E na realidade, a personalidade de Miguel Ardan dava campo largo ás observações do analysta. Aquelle homem espantoso vivia em perpetua disposição para a hyperbole, não passára ainda alem da idade dos superlativos; desenhavam-se-lhe os objectos na retina com dimensões desmarcadas, e d'ahi lhe vinha uma associação de idéas gigantescas; via tudo em ponto grande, excepto os homens e as difficuldades. E comtudo isto era de uma natureza luxuriante, artista por instincto, moço de espirito, que sem dar descargas de ditos chistosos, sabia entretanto na conversação esgrimir como o mais habil atirador. Nas discussões, pouca importancia lhe merecia a logica. Rebelde ao syllogismo, que por certo nunca teria inventado, tinha um modo de argumentar só proprio d'elle. Passando por cima de tudo e de todos, atirava em cheio ao adversario uns argumentos _ad hominem_ de effeito certeiro e seguro, e fazia gosto em defender com unhas e dentes as causas perdidas. Entre outras manias tinha a de se proclamar «um ignorante sublime», como Shakspeare, e fazia profissão do desprezo pelos sabios: «Elles, dizia, entretem-se a marcar os pontos, e nós cá é que jogâmos a partida». Em summa, era um bohemio do paiz dos montes e das maravilhas, aventuroso, mas não aventureiro, uma cabeça ôca, um Phaetonte que guiava a toda a brida o carro do Sol, um Icaro com azas de sobresallente. E era homem que sabia arriscar e arriscar a serio a propria pessoa, que se arrojava de cabeça levantada ás mais loucas emprezas, cortando a si proprio a retirada com mais enthusiasmo ainda do que Agathócles quando incendiou a esquadra que commandava. Prompto a toda a hora a arriscar a pelle, tinha por sorte invariavel, por maior que fosse a cambalhota, caír sempre de pé como os bonequitos de sabugo com que brincam as creanças. Em duas palavras, tinha por divisa: _dê por onde der!_ e por _ruling passion_[86], segundo a bella expressão de Pope, o amor pelo impossivel. Mas tambem era para ver-se como aquelle maganão emprehendedor possuia os defeitos inherentes ás suas boas qualidades. Diz o vulgo, que quem se não aventurou não perdeu nem ganhou. Miguel Ardan bastas vezes se tinha aventurado, e nem por isso tinha ganho! Para dar cabo de dinheiro era um verdugo, um tonel das Danaïdes. Homem aliás perfeitamente desinteressado, tantas eram as asneiras que lhe dictava o grande coração, como as que lhe insinuava a estouvada cabeça; esmoler, cavalheiroso, incapaz de assignar o «enforque-se» do seu mais cruel inimigo, mas muito capaz de se vender para resgatar um negro. Em França, na Europa, toda a gente conhecia este personagem brilhante e estrepitoso. Nem era para admirar que assim succedesse a quem trazia já enrouquecidos de servi-lo e apregoar-lhe o nome as cem vozes da fama, a quem vivia como que dentro de uma casa de vidro, e tomava por confidente dos seus mais intimos segredos o universo inteiro. Por estas mesmas rasões tambem Ardan possuia uma admiravel collecção de inimigos, de entre aquelles que elle, acotovelando para abrir caminho por entre a multidão, mais ou menos maguára, ferira ou derrubára sem dó nem piedade. E no entretanto era geralmente bemquisto e até tratado com excessivo mimo. Era d'aquelles homens a quem póde applicar-se a expressão popular «é pegar ou largar», e o caso é que todos lhe pegavam, todos tomavam interesse nos arrojados commettimentos d'elle, e lhe seguiam com inquietação as peripecias porque já era de todos conhecida a imprudente audacia que o caracterisava. A algum amigo, que no intuito de lhe suspender os designios, vinha prophetisar-lhe catastrophe imminente, respondia sempre Ardan com amavel sorriso: «Da lenha das proprias arvores nasce e lavra o incendio da floresta». Quem lhe diria a elle que citava então o mais bonito de todos os proverbios arabes! Tal era o passageiro do _Atlanta_, sempre em agitação, sempre a ferver, sempre debaixo da acção de um fogo interior, sempre commovido, não pelo que vinha fazer á America, que nem em tal cogitava, mas por virtude da ardente organisação de que era dotado. Nunca houve duas personalidades que apresentassem contraste mais saliente que o francez Miguel Ardan e o yankee Barbicane; todavia ambos, cada um lá a seu modo, eram emprehendedores, atrevidos e audaciosos. Em breve foi interrompida pelos hurrahs e vivas da multidão a contemplação a que se entregára o presidente do Gun-Club em presença do rival que viera desterra-lo da posição principal para o segundo logar. E tão phrenetica se tornou a gritaria, tornaram-se por tal fórma pessoaes as manifestações do enthusiasmo, que Miguel Ardan, depois de ter apertado um milheiro de mãos, em que ia deixando os dez dedos das d'elle, teve que se refugiar no camarim. Barbicane seguiu-o sem lhe ter dito nem palavra. «Sois Barbicane? perguntou Miguel Ardan logoque se acharam a sós, e com a intonação de quem fallava a um amigo de vinte annos. --Sou, respondeu o presidente do Gun-Club. --Pois então muito bons dias, Barbicane. Como vae isso? Excellentemente? Ora vamos; bom é que assim seja: tanto melhor! --Com que, disse Barbicane, sem buscar melhor entrada em materia, sempre estaes decidido a partir? --Absolutamente decidido. --E nada poderá impedir-vo-lo? --Cousa alguma. E os planos do projectil mandaste-los modificar em harmonia com as indicações do meu telegramma? --Estava á espera da vossa chegada. Mas, perguntou Barbicane, insistindo novamente, reflectistes bem?... --Reflectir! E que tempo tenho eu para o estar a perder!? Apanho occasião de ir dar um passeio até á Lua, e aproveito-a, nada mais. Nem me parece que seja cousa que mereça maiores reflexões.» Barbicane devorava com o olhar aquelle homem que fallava de tal projecto de viagem com tanta leviandade, tão completo socego e tão perfeita ausencia de cuidados. --«Mas pelo menos, disse, haveis de ter plano formado, meios de execução. --Excellentes, meu caro Barbicane. Mas dae-me licença que faça uma só observação: o que eu gostava era de contar a minha historia toda de uma vez só e a toda a gente, e não tratar mais do assumpto. Evitam-se assim as repetições. Consequentemente, salvo melhor conselho, convocae os vossos amigos, vossos collegas, toda a cidade, a Florida inteira, a America em peso, se vos parecer, e ámanhã estou prompto para expor os meus meios como para responder a todas as objecções, sejam lá quaes forem. Descansae que hei de espera-las a pé firme. Convem-vos isto? «Convem-me», respondeu Barbicane. Accordado isto, saiu o presidente do camarim e veiu communicar á multidão a proposta de Miguel Ardan. Receberam-lhe as palavras com pateadas e grunhidos de alegria. A cousa assim feita obviava a todas as difficuldades. No dia seguinte todos poderiam contemplar á vontade o heroe europeu. Entretanto um ou outro espectador houve mais cabeçudo que não quiz largar o tombadilho do _Atlanta_, e passou a noite a bordo. Entre outros, J.-T. Maston, que tinha atarraxado a ganchorra no parapeito do castello de pôpa; nem um cabrestante de lá poderia arranca-lo! «É um heroe! um heroe! berrava elle em todas as intonações, nós é que somos umas fracas mulheres, em comparação com esse europeu!» O presidente, esse depois de convidar a retirarem-se todos os visitantes, volveu ao camarim do passageiro e não mais o largou até ao momento em que a sineta de bordo tocou o quarto da meia noite. Mas n'essa occasião, já os dois rivaes em popularidade se apertavam reciproca e calorosamente as mãos, e Miguel Ardan já tratava por tu ao presidente Barbicane. CAPITULO XIX UM MEETING No dia seguinte levantou-se o «astro do dia» um tanto tarde para corresponder á impaciencia publica. Para desempenhar o papel de Sol na illuminação de similhante festa, acharam-n'o um tanto preguiçoso. Por vontade de Barbicane, que se arreceiava de perguntas indiscretas para Miguel Ardan, teria o auditorio sido reduzido a um pequeno numero de adeptos, os collegas, por exemplo. Mas isso!.. era mais facil pôr um dique á corrente do Niagara. Por consequencia teve de renunciar ao que projectára, e de consentir que o amigo de recente data corresse todos os riscos de uma conferencia publica. Apesar das suas dimensões colossaes, julgou-se ainda insufficiente para a realisação de tal ceremonia a nova sala da Bolsa de Tampa-Town, porque a reunião projectada assumira proporções de verdadeiro meeting. O logar escolhido foi uma vasta planicie situada fóra da cidade, e em poucas horas conseguiram abriga-la dos raios solares; todos os arranjos necessarios para a construcção de uma barraca colossal foram ministrados pelos navios surtos no porto, abundantes em velame, cordame, mastros e vergas de sobresalente. Dentro em pouco estendia-se por sobre a planicie calcinada, a defende-la contra as ardencias do dia, um immenso céu de panno debaixo do qual trezentas mil pessoas acharam abrigo para poderem aguentar impunemente por espaço de muitas horas, emquanto esperavam pelo francez, uma temperatura de abafar. De toda aquella turba de espectadores só á primeira terça parte era dado ver e ouvir; a segunda mal via e nem palavra ouvia; quanto á terceira, essa nada via, e ainda menos ouvia. E nem por isso foi a menos prompta a prodigalisar applausos. Ás tres horas, realisou-se a apparição de Miguel Ardan, em companhia dos socios principaes do Gun-Club. Dava Miguel o braço direito ao presidente Barbicane e o braço esquerdo a J.-T. Maston, mais radiante e quasi tão rutilante como o Sol ao meio dia. Ardan subiu a um estrado, de cima do qual se lhe estendia a vista por sobre aquelle oceano de chapéus. Não se percebia n'elle o menor signal de acanhamento, nem de impostura; estava ali como quem está em sua casa, alegre, familiar e amavel; depois de responder com uma graciosa inclinação de cabeça aos hurrahs com que o acolheram, e de reclamar com um gesto de mão silencio, tomou a palavra em inglez, exprimindo-se, com extrema correcção de linguagem, nos seguintes termos: «Meus senhores, apesar do grande calor que faz, tomarei a liberdade de abusar dos vossos momentos para dar algumas explicações ácerca de projectos que, segundo parece, vos interessam. «Não sou orador nem homem de sciencia, e não contava fallar em publico; disse-me porém o meu amigo Barbicane que isso vos seria agradavel, e tanto bastou para me decidir a esse sacrificio. Consequentemente, escutae-me com os vossos seiscentos mil ouvidos, e tende a bondade de desculpar os erros do auctor.» Mereceu grande apreço aos circumstantes aquelle exordio sem ceremonia; um immenso murmurio de satisfação deu prova do contentamento da multidão. «Meus senhores, proseguiu Ardan, todos e quaesquer signaes de approvação ou desapprovação são permittidos. Isto posto, começarei Em primeiro logar, não deveis esquecer que estaes tratando com um ignorante, e tão longe vae sua ignorancia, que até as difficuldades ignora. Pareceu-lhe portanto cousa simples, natural e facil tomar passagem dentro de um projectil, e partir para a Lua. Era viagem que mais tarde ou mais cedo se havia de vir a fazer, e pelo que diz respeito ao modo de locomoção adoptado, esse não era mais do que simples consequencia da lei do progresso. O homem começou por viajar com as mãos pelo chão, depois, um bello dia, só nos dois pés, depois n'uma carroça, depois em caleça, depois em carroção, depois em diligencia, depois em caminho de ferro; pois bem! o projectil é a viatura do futuro; que, a fallar a verdade, os planetas não são senão outros tantos projecteis, simples balas de canhão arremessadas pela mão do Creador. [Figura: Os comboios de projecteis para a Lua (pag. 163).] «Mas voltemos ao nosso vehiculo. Algum de vós, senhores, poderá ter pensado que a velocidade que tem de imprimir-se-lhe, é excessiva; pois não é assim; todos os astros têem superior rapidez, e a propria Terra, em seu movimento de translação em volta do Sol, nos leva comsigo com triplicada velocidade. Vou apresentar-vos alguns exemplos, e pedirei permissão para me exprimir contando por leguas, porque não estou muito familiarisado com as medidas americanas e tenho receio de me embarulhar nos calculos.» [Figura: Ataque e replica (pag. 174).] Ninguem oppoz difficuldades á concessão pedida, que pareceu perfeitamente rasoavel, e o orador continuou o discurso: «Eis-aqui, senhores, a velocidade dos differentes planetas. Apesar da minha ignorancia, força é confessa-lo, conheço com muita exactidão estas miudezas astronomicas. Mas em menos de dois minutos estareis a esse respeito tão instruidos como eu. Sabei pois, que Neptuno anda cinco mil leguas por hora; Urano, sete mil; Saturno, oito mil oitocentas e cincoenta e oito; Jupiter, onze mil seiscentas e setenta e cinco; Marte, vinte e duas mil e onze; a Terra, vinte e sete mil e quinhentas; Venus, trinta e duas mil cento e noventa; Mercurio, cincoenta e duas mil quinhentas e vinte; certos cometas, um milhão e quatrocentas mil leguas no perihelio! Nós cá, verdadeiros passeiantes, gente de poucas posses, não havemos de ir alem de nove mil novecentas leguas de velocidade, e mais ha de esta ir sempre diminuindo. Perguntarei eu agora, se ha aqui motivo para pasmar, e se todas estas velocidades não hão de ser um dia excedidas por outras ainda maiores, de que provavelmente serão agentes mechanicos a luz ou a electricidade?» Ninguem pareceu pôr em duvida a asserção de Miguel Ardan. «Caros auditores, proseguiu este, se formos a dar credito a uns certos espiritos acanhados,--e é exactamente esta a qualificação que melhor lhes cabe--está a humanidade encerrada n'um circulo de Popilius, que alem do qual não póde dar passo, e condemnada a vegetar no globo terraqueo sem esperança sequer de poder abrir vôo para os espaços planetarios! Pois não é assim! Agora vamos á Lua, e ainda havemos de ir aos planetas, ainda havemos de ir ás estrellas, como se vae hoje de Liverpool a New-York, com facilidade, rapidez e segurança. Em breve serão atravessados o oceano atmospherico, bem como os oceanos da Lua! A distancia é apenas um termo de relação, e havemos de chegar a final a reduzi-la a zero.» A assembléa, apesar de muito enlevada pelo heroe francez, ficou um tanto attonita com aquella theoria audaciosa. Miguel Ardan pareceu percebê-lo, e proseguiu com amavel sorriso: «Parece-me que não estaes lá muito convencidos, estimaveis hospedes. Pois bem! Discutâmos um pouco. Sabeis quanto tempo seria necessario a um comboio expresso para chegar á Lua? Trezentos dias. Nada mais. O trajecto é de oitenta e seis mil quatrocentas e dez leguas, mas isso que é? Não chega a ser nove vezes um circuito em volta da Terra; não ha marinheiro ou viajante digno d'esse nome que não tenha andado mais do que isso no decurso da vida! Pensae pois, que eu não hei de gastar mais de noventa e sete horas no caminho! Ah! estaes imaginando que a Lua está a grande distancia da Terra, e que não seria mau reflectir antes de tentar a aventura! Que dirieis então se se tratasse de ir a Neptuno que gravita a um milhão cento e quarenta e sete mil leguas do Sol! Isso é que é viagem que poucos poderiam intentar, ainda que mais não custasse que a cinco soldos por kilometro! Nem o barão de Rothschild com os seus mil milhões tinha com que pagasse o logar; faltavam-lhe ainda cento e quarenta e sete milhões para não ficar no caminho!» Esta maneira de argumentar pareceu ser muito do agrado da assembléa. Miguel Ardan, por sua parte, bem possuido como estava do assumpto, deixava-se arrastar ao sabor da argumentação com soberbo enthusiasmo; percebêra que era ouvido com avidez, e proseguiu portanto com admiravel confiança: «Pois bem, amigos, ainda esta distancia de Neptuno ao Sol não é nada, se a compararmos com a das estrellas; effectivamente para avaliar o afastamento de taes astros é necessario lançar mão de uma classe de numeros deslumbrantes, o menor dos quaes tem nove algarismos, tomar emfim por unidade o milhar de milhões. Peço-vos perdão de me mostrar tão sabido no assumpto, mas é por ser de um interesse palpitante. Ouvi e julgae. Alpha do Centauro está a oito billiões de leguas, Wega a cincoenta billiões, Sirius a cincoenta billiões, Arcturus a cincoenta e dois billiões, a Polar a cento e dezesete billiões de leguas, a Cabra a cento e setenta billiões, as outras estrellas a milhares de billiões e de trilliões de leguas! E ainda haverá quem falle na distancia que medeia entre o Sol e os planetas! E haverá ainda quem sustente que existe tal distancia! Erro, falsidade! aberração dos sentidos! Quereis saber o que eu penso ácerca d'esse mundo que começa no astro radiante e acaba em Neptuno? Quereis conhecer a minha theoria? É muito simples! Para mim o mundo solar é um corpo solido, homogeneo; os planetas que o formam, apertam-se, tocam-se, adherem, e o espaço que entre elles existe é como o espaço que medeia sempre entre as molleculas do mais compacto metal, seja prata, seja ferro, oiro ou platina! Julgo portanto ter direito para affirmar, e repito-o com convicção, que ha de communicar-se a vós todos: «A distancia é uma palavra vã, a distancia nem sequer existe!» --Bem dito! Bravo! Hurrah! gritou _una voce_ a assembléa electrisada pelo gesto, pela accentuação do orador e pelo ousado das concepções. --Não, exclamou J.-T. Maston ainda mais energicamente que os outros, a distancia não existe!» E, arrastado pela violencia dos movimentos, pelo impulso do proprio corpo que mal podia dominar, ía caíndo do alto do estrado no chão. Conseguiu, todavia, retomar a posição de equilibrio, e livrar-se de uma quéda que lhe havia de provar brutalmente que a distancia não era palavra de todo vã. Em seguida proseguiu no seu discurso o attrahente orador. «Amigos, disse Miguel Ardan, cuido que tal problema deve já agora ter-se como resolvido. Se não logrei convencer-vos a todos, foi de certo porque fui timido nas demonstrações, fraco na argumentação, e a culpa é da minha insufficiencia de estudos theoricos. Seja lá como for, repito, a distancia da Terra ao seu satellite é realmente pouco importante e indigna de preoccupar qualquer espirito grave. Creio que não será ir muito alem da verdade affirmar que em breve se hão de vir a estabelecer trens de projecteis, nos quaes poderá fazer-se com toda a commodidade a viagem da Terra á Lua. N'estes é que não haverá que receiar, nem choques, nem abalos, nem descarrilamentos, e chegar-se-ha ao termo da viagem, sem cansaço em linha recta, «a vôo de abelha», para fallar na linguagem dos caçadores cá da America. D'aqui a vinte annos, de certo já metade da Terra tem ido visitar a Lua! «Hurrah! hurrah! por Miguel Ardan, clamaram os circumstantes ainda os menos convencidos. --Hurrah por Barbicane!» respondeu modestamente o orador. Aquelle acto de gratidão para com o promotor da empreza, foi recebido pelos espectadores com applausos unanimes. «Agora, amigos, proseguiu Miguel Ardan, se alguem tem qualquer pergunta a fazer-me, por certo que embaraçará um pobre homem como eu, entretanto farei todos os esforços para responder.» Até aquelle momento não tivera o presidente do Gun-Club senão motivos de satisfação pela direcção que a discussão tomava. Versando esta sobre theorias especulativas, Miguel Ardan, levado pela sua viva imaginação, mostrava-se extremamente brilhante. Por consequencia, o que a Barbicane parecia necessario, era pôr impedimento a que se desviasse para questões praticas, de que por certo Ardan se havia de saír menos airoso. Barbicane apressou-se portanto a tomar a palavra, para perguntar ao amigo de recente data qual era o seu modo de ver em respeito a habitantes da Lua e dos planetas. «É um grande problema esse que me propões para resolver, meu digno presidente, respondeu o orador sorrindo; todavia, se me não engano, homens de grande intelligencia, taes como Plutarco, Swedenborg, Bernardin de Saint-Pierre e muitos outros pronunciaram-se pela affirmativa. Olhando a questão pelo lado da philosophia natural, sou levado a pensar em harmonia com a opinião d'elles; a mim proprio digo que cousa alguma inutil existe no mundo, e respondendo á tua pergunta, com outra pergunta, affirmarei que se os mundos são habitaveis, é porque são habitados, porque o foram, ou porque ainda o hão de ser. Muito bem! clamaram as primeiras linhas de espectadores, cuja opinião tinha força de lei para com as ultimas. --Com mais logica e a proposito é que não ha responder, disse o presidente do Gun-Club. A minha pergunta transforma-se portanto na seguinte: «Serão porventura os mundos habitaveis?» --Pela minha parte parece-me que o são. E eu cá por mim, estou seguro d'isso, respondeu Miguel Ardan. --Todavia, replicou um dos circumstantes, argumentos ha que vão de encontro á theoria da habitabilidade dos mundos. Para que estes podessem ser habitaveis, era evidentemente necessario, que na maior parte d'elles, fossem modificados os principios da vida. N'estes termos, e não me referindo já senão a planetas, n'uns d'elles seria o homem queimado e n'outros gelado, segundo a respectiva distancia solar. --Sinto, respondeu Miguel Ardan, não conhecer pessoalmente o meu honrado contradictor. A objecção que apresenta tem seu valor, mas creio que póde ser combatida com bom exito, assim como todas as que se oppõe á habitabilidade dos mundos. Se eu fôra um physico, havia de dizer-lhe que, se ha menos calorico em movimento nos planetas proximos do sol, e pelo contrario mais, nos planetas mais afastados, esse mesmo phenomeno é bastante para equilibrar o calor e tornar a temperatura de todos os mundos supportavel para seres organisados como nós outros. Se fôra naturalista havia de repetir-lhe, depois de o terem dito muitos sabios illustres, que a natureza mesmo cá na Terra nos fornece exemplos de animaes que vivem em condições bem diversas de habitabilidade; que os peixes respiram n'um ambiente que é mortal para os outros animaes; que os amphibios têem uma existencia dupla bastante difficil de explicar; que ha certos habitantes dos mares que se mantem nas camadas de grande profundidade, onde aguentam, sem serem esmagados, pressões de cincoenta ou sessenta atmospheras; que ha diversos insectos aquaticos insensiveis á acção da temperatura, que se encontram tanto nas nascentes de agua a ferver como nos plainos gelados do oceano polar; e finalmente que é força reconhecer na natureza uma diversidade de meios de acção por vezes incomprehensivel, mas que nem por isso é menos real, e que chega até á omnipotencia. Se eu fôra chimico, havia de dizer-lhe que os aerolithos, corpos evidentemente formados fóra do mundo terrestre, tem revelado pela analyse vestigios indiscutiveis de carbonio, e que esta substancia só tem origem nos seres organisados, e que, em virtude das experiencias de Reichenbach, deve necessariamente ter estado «animalisada». Emfim, se fôra theologo, dir-lhe-ía que, segundo S. Paulo, parece que a redempção divina se applicára, não sómente á Terra, mas a todos os mundos celestes. Mas não sou theologo, nem chimico, nem naturalista, nem physico. E portanto, na minha perfeita ignorancia das grandes leis que regem o universo, limitar-me-hei a responder: --Não sei se os mundos são ou não habitados, e por isso mesmo que não sei, vou lá ver!» Se o adversario de Miguel se abalançou ou não a apresentar outros argumentos é que nós não podemos dizer, porque os gritos freneticos da multidão tornaram-se então capazes de impedir que qualquer opinião fosse sequer ouvida. Logoque se restabeleceu o silencio, ainda nos mais afastados grupos, o triumphante orador terminou, contentando-se em acrescentar as seguintes considerações: «Bem deveis pensar, estimaveis Yankees, que apenas toquei de leve tão momentosa questão; eu não vim aqui para fazer um curso publico e defender theses ácerca de tão vasto assumpto. Ha ainda uma collecção completa de argumentos de natureza inteiramente differente a favor da habitabilidade dos mundos. Pô-los-hei de parte. Dêem-me entretanto licença que insista ácerca de um unico ponto. Áquelles que sustentam que os planetas não são habitados, deve responder-se:--Póde ser que tenhaes rasão, se é que está demonstrado que a Terra é o melhor dos mundos possiveis; mas isso é que não é assim, apesar do que Voltaire disse a tal respeito. A Terra tem um só satellite, emquanto Jupiter, Urano, Saturno e Neptuno têem muitos ao seu serviço, vantagem que não é para desdenhar. Mas o que, mais que tudo, torna o nosso globo pouco _confortable_, é a inclinação do eixo sobre a orbita. D'esta vem a desigualdade dos dias e das noites; d'esta a incommoda diversidade das estações. No nosso desgraçado espheroide faz sempre frio ou calor demasiado; gela-se por cá no inverno, e arde-se no estio; é o planeta dos defluxos, dos coryzas e das constipações, emquanto na superficie de Jupiter, por exemplo, cujo eixo tem pequena inclinação[87], os habitantes, se é que existem, podem gosar temperaturas invariaveis; ali ha uma zona das primaveras, uma zona dos estios, uma zona dos outonos e uma zona de invernos perpetuos; cada habitante de Jupiter póde escolher o clima que mais lhe convier, e pôr-se para toda a vida ao abrigo das variações de temperatura. Haveis portanto de conceder-me sem difficuldade a superioridade de Jupiter em relação ao nosso planeta, sem fallar já das revoluções annuas d'aquelle astro, que duram cada uma doze annos dos nossos! Ainda mais, é para mim evidente, que com taes auspicios e em tão maravilhosas condições de existencia, os habitantes d'esse mundo afortunado são entes superiores; que ali os sabios são mais sabios, os artistas mais artistas, os maus peiores, e os bons melhores. Ai! e que nos falta a nós, pobre espheroide, para chegar a tal perfeição? Bem pouca cousa. Um eixo de rotação, com menos inclinação sobre o plano da orbita! --Pois bem! clamou uma voz impetuosa, unâmos os nossos esforços, inventemos machinas e indireitemos o eixo da Terra! Rebentou ao ouvir-se tal proposta uma trovoada de applausos; o auctor da proposta fôra, e nem outro podia ser, J.-T. Maston. É provavel que o fogoso secretario se deixasse arrastar a aventar tão ousada idéa pelos seus instinctos de engenheiro. Força é dize-lo porém, porque é a verdade, muitos o applaudiram com enthusiasmo, e por certo se tivessem o ponto de apoio que Archimedes reclamava, os americanos teriam construido uma alavanca capaz de levantar o mundo e de endireitar-lhe o eixo. Mas o que lhes faltava, áquelles temerarios constructores, era exactamente o ponto de apoio. Entretanto aquella idéa «eminentemente pratica» teve um exito enorme; suspendeu-se a discussão por um bom quarto de hora, e por muito tempo, por muito tempo ainda, se fallou nos Estados Unidos da America da proposta formulada, com tanta energia pelo secretario perpetuo do Gun-Club. CAPITULO XX ATAQUE E REPLICA Parecia que aquelle incidente devia pôr termo á discussão. Estava dita «a ultima palavra» e a melhor não poder ser. Todavia, quando acalmou a agitação, ouviram-se as seguintes palavras, pronunciadas por uma voz forte e severa: «Agora que o orador já deu mais do que devêra dar á phantasia, por certo não se negará a entrar de novo no assumpto, construindo menos theorias, e discutindo a parte pratica da expedição que intenta?» Volveram-se todos os olhares para o personagem que fallava d'aquella fórma. Era um homem magro, secco, de physionomia energica, com abundantes barbas, talhadas á americana, que lhe saíam debaixo do queixo inferior. Conseguira pouco e pouco collocar-se nas primeiras filas, á sombra dos diversos movimentos que se tinham realisado na assembléa. Ali, cruzados os braços, com o olhar ousado e scintillante, fixava-o imperturbavelmente no heroe do meeting. Depois de ter formulado a pergunta, calou-se sem parecer impressionado pelos milheiros de olhares que para elle convergiam, nem pelo murmurio desapprovador, que suscitaram as palavras que pronunciára. E como a resposta se ía fazendo esperar, repetiu de novo a pergunta, com a mesma accentuação precisa e terminante, e acrescentando: «Estamos aqui para tratar da Lua, que não da Terra. --Tendes rasão, senhor, respondeu Miguel Ardan, a discussão desviou-se um tanto do caminho regular. Volvamos á Lua. --Senhor, replicou o desconhecido, affirmaes que o nosso satellite é habitado. Bem. Mas se existem selenitas, certamente essa especie de gente vive sem respirar, porque--e por interesse vosso é que vos vou prevenindo--não ha uma unica mollecula de ar á superficie da Lua.» Ao ouvir tal asserção, sacudiu Ardan a fulva juba: comprehendeu que com aquelle homem é que a luta ía engajar-se a serio e na parte mais melindrosa do assumpto. Olhou tambem fixo para elle e disse: «Ah! Então não ha ar na Lua! E, se me dá licença, quem é que o affirma? --Os homens da sciencia. --Na verdade? --Na verdade. --Senhor, replicou Miguel Ardan, fóra de qualquer brincadeira, tenho profunda estima pelos homens de sciencia que sabem, mas tambem profundo desdem pelos sabios que nada sabem. --E conheceis alguns que pertençam á ultima categoria? --Muito particularmente. Em França ha um que sustenta que «mathematicamente» as aves não podem voar, e outro cujas theorias demonstram que os peixes não foram feitos para viver na agua. --Não é d'esses que trato, senhor, e para apoiar a minha asserção poderia citar-vos nomes que de certo não havieis de recusar. --N'esse caso, senhor, muito havieis de embaraçar um pobre ignorante, que, aliás, nada deseja tanto como instruir-se! --Então, se não estudastes as questões scientificas, porque é que vos abalançaes a discuti-las? perguntou com bastante rudeza o desconhecido. --Porque? respondeu Ardan. Pela simples rasão que é sempre arrojado aquelle que nem suspeita tem dos perigos! Nada sei, é verdade, mas é exactamente n'esta fraqueza que consiste a minha força. [Figura: Arrancaram o estrado de repente (pag. 184).] --A vossa fraqueza chega a ser loucura, exclamou o desconhecido com intonação de mau humor. [Figura: Irrompeu Maston pelo quarto dentro (pag. 187).] --Sim!? Tanto melhor, replicou o francez, se essa loucura me levar até á Lua! Barbicane e os collegas devoravam com o olhar o intruso, que com tanto arrojo vinha apresentar-se em opposição á empreza. Ninguem o conhecia, e o presidente pouco seguro ácerca das consequencias da discussão tão francamente posta, olhava com tal ou qual apprehensão para o seu novo amigo. A assembléa mostrava-se attenta e seriamente inquieta, porque a disputa tivera como resultado chamar-lhe a attenção para os perigos, ou talvez verdadeiras impossibilidades da expedição. «Senhor, proseguiu o adversario de Miguel Ardan, são numerosas e indiscutiveis as rasões que provam a ausencia completa de atmosphera em volta da Lua. Até _a priori_ póde affirmar-se que se alguma vez existiu essa atmosphera da Lua, deve ter-lhe sido subtrahida pela Terra. Prefiro entretanto objectar-vos factos irrecusaveis. --Objectae, senhor, respondeu Miguel Ardan com perfeita cortezania, objectae á vossa vontade! --Sabeis, disse o desconhecido, que quando os raios luminosos atravessam um meio qualquer tal como o ar, são desviados da linha recta, ou, por outras palavras, que experimentam uma refracção. Pois bem! quando a Lua occulta alguma estrella, os raios luminosos que emanam d'esta, mesmo quando são tangentes á peripheria do disco lunar, nunca experimentam o menor desvio nem dão o mais leve indicio de refracção. D'ahi flue como consequencia evidente que a Lua não está circumdada por uma atmosphera.» Olharam todos para o francez, porque admittida que fosse a observação, as consequencias tiradas eram perfeitamente rigorosas. «Em verdade, respondeu Miguel Ardan, é esse o vosso mais valioso, por não dizer o unico, argumento, e qualquer homem de sciencia havia de ver-se extremamente embaraçado para responder-lhe; eu cá direi sómente que tal argumento não tem valor absoluto, porque suppõe que o diametro angular da Lua está perfeitamente determinado, o que não é exacto. Mas passemos adiante, e dizei-me, meu caro senhor, se admittis a existencia de vulcões á superficie da Lua. --De vulcões extinctos, sim; inflammados, não. --Deixar-me-heis comtudo acreditar, e sem transpor de certo os limites da logica, que esses vulcões estiveram em actividade em outra epocha? --Isso é positivo, mas como tambem era possivel que os proprios vulcões fornecessem o oxygenio necessario para a combustão, o facto das erupções não prova de modo algum a existencia de atmosphera lunar. --Passemos adiante, respondeu Miguel Ardan, e ponhâmos de parte tal genero de argumentos para chegarmos ás observações directas. Previno-vos porém que vou citar os nomes proprios. --Pois citae. --É o que farei. Em 1715, os astronomos Louville e Halley, na observação do eclipse de 3 de maio, notaram certas fulminações de natureza singular. Essa especie de relampagos, rapidos e a miudo repetidos, foi por estes observadores attribuida a tempestades que se desencadeavam na atmosphera da Lua. Em 1715, replicou o desconhecido, tomaram os astronomos Louville e Halley por phenomenos lunares phenomenos que eram puramente terrestres, taes como bolidos, aerolithos ou outros similhantes, e que se realisaram na nossa atmosphera. É isto o que responderam os homens da sciencia á enunciação de taes factos, e é o que eu com elles responderei tambem. --Adiante pois, respondeu Ardan, sem se perturbar com a replica. E Herschel, em 1787, não observou um grande numero de pontos luminosos na superficie da Lua? --É certo, mas o proprio Herschel, que aliás não deu explicação alguma ácerca da origem d'esses pontos luminosos, não tirou por conclusão do que observára a forçada existencia de uma atmosphera lunar. --Bem respondido, disse Miguel Ardan cumprimentando o antagonista, vejo que sois muito entendido em selenographia. --Verdade é que sou bastante entendido no assumpto, senhor; devo porém acrescentar, que os mais habeis observadores, os que mais a fundo têem estudado o astro das noites, os srs. Beer e Moedler, estão commigo de accordo ácerca da falta absoluta de ar na superficie d'elle.» Houve certa sensação entre os circumstantes, que pareceram impressionados pelos argumentos do singular personagem. «Continuemos a passar adiante, respondeu Miguel Ardan com a maior placidez, que chegaremos a final a um facto importante. Um habil astronomo francez, M. Laussedat, na observação do eclipse de 18 de julho de 1860, verificou que as extremidades do crescente solar estavam arredondadas e truncadas. Ora tal phenomeno só podia ser produzido por um desvio dos raios solares que atravessassem uma atmosphera da Lua; outra explicação admissivel não ha. --E esse facto é positivo? perguntou com vivacidade o desconhecido. --Absolutamente positivo!» Realisou-se então na assembléa um movimento inverso do anterior, e que fez de novo pender os espiritos para o heroe favorito, cujo antagonista ficára silencioso. Ardan retomou a palavra, e sem se ufanar com a decidida vantagem que acabava de obter, disse com simpleza: Vêdes por consequencia, meu caro senhor, que não devemos pronunciar-nos de uma fórma absoluta contra a existencia de atmosphera á superficie da Lua; essa atmosphera é provavelmente pouco densa, muito subtil, mas na actualidade a sciencia admitte geralmente a existencia d'ella. --Não nas montanhas, em que vos peze, replicou o desconhecido, que não queria dar o braço a torcer. Não, mas no fundo dos valles, e sem que a sua altura passe de alguns centos de pés. --Em todo o caso, não será mau que tomeis todas as precauções, porque esse ar ha de estar terrivelmente rarefeito. --Oh! meu estimavel senhor, sempre ha de haver que farte para um homem só; e demais, depois de lá estar em cima, eu tratarei de o economisar o melhor que podér; não respirarei senão nas grandes occasiões!» Retumbou uma estrepitosa gargalhada aos ouvidos do mysterioso interlocutor, que estendeu a vista por toda a assembléa, como que desafiando-a, altivo. «Consequentemente, proseguiu Miguel Ardan, visto como estamos de accordo ácerca da existencia de tal ou qual atmosphera, somos forçados a admittir tambem a presença de tal ou qual quantidade de agua. E é uma consequencia esta com que, pela minha parte, me alegro em extremo. Alem d'isto permittirá o meu amavel contradictor que lhe submetta ainda mais outra observação. Nós só conhecemos uma das faces do disco da Lua, e se pouco ar póde haver na face que olha para nós, é possível que haja muito na face opposta. --E porque rasão? --Porque a Lua, em virtude da attracção terrestre é que tomou a fórma de um ovo, que nós vemos pelo lado da ponta mais achatada; e d'ahi vem a consequencia obtida pelos calculos de Houven, que o centro de gravidade da Lua está situado no outro hemispherio. E d'ahi tambem por conclusão, que todas as massas aereas e aquosas devem ter sido arrastados para a outra face do nosso satellite nos primeiros tempos da sua creação. --Puras phantasias! exclamou o desconhecido. --Isso não! mas sim puras theorias, aliás fundadas nas leis da mechanica, e que me parecem de difficil refutação. Appello portanto para o juizo da assembléa, e ponho á votação a questão de saber se a vida, tal como existe na Terra, é ou não possivel na superficie da Lua?» Trezentos mil auditores applaudiram simultaneamente a proposição. O adversario de Miguel Ardan ainda quiz fallar, mas nem podia fazer-se ouvir. Caíu-lhe em cima como uma saraivada de gritos e ameaças. «Basta! Basta! diziam uns. --Fóra o intruso! repetiam outros. --Fóra! Fóra! clamava a multidão irritada. O desconhecido porém, firme, agarrado e bem seguro ao estrado, não arredou pé e deixou passar a tormenta, que teria assumido proporções formidaveis se Miguel Ardan não a tivera apaziguado com um gesto. Ardan era muito cavalheiro para abandonar um adversario em taes extremos. «Desejaes acrescentar mais algumas palavras? perguntou Ardan com a mais graciosa intonação. --Um cento! ou um milheiro! respondeu iracundo o desconhecido. Ou, para melhor dizer, não, basta só uma! Se perseveraes na empreza, é porque sois... --Imprudente! E com que fundamento me trataes vós por similhante fórma, a mim, que até pedi ao meu amigo Barbicane que a bala fosse cylindro-conica, só para não andar á roda no caminho como qualquer esquilo? --Mas, desgraçado, logo á partida ha de fazer-vos em estilhas a horrorosa repercussão do tiro! --Meu caro contradictor, agora sim, agora é que pozestes o dedo na chaga, na verdadeira e unica difficuldade; entretanto o conceito que formo do engenho industrial dos americanos é muito elevado para que me permitta acreditar que não hão de conseguir resolve-la. --E o calor desenvolvido pela velocidade do projectil ao atravessar as camadas da atmosphera? --Oh! as paredes do projectil são espessas, e depois tanto é o tempo que eu hei de levar a atravessar a atmosphera!? --Mas viveres e agua? --Já calculei que podia levar commigo provisões para um anno, e a viagem dura só quatro dias! --E ar para respirar no caminho? --Hei de fabrica-lo por processos chimicos. --Mas a quéda na Lua, dado mesmo que consigaes lá chegar? --Ha de ser seis vezes menos rapida do que o seria na superficie da Terra, visto como a gravidade é seis vezes menor na superficie da Lua. --Ainda assim ha de ser mais do que sufficiente para vos fazer em pedaços como a um bocado de vidro! --E quem é que me ha de impedir de retardar a queda por meio de foguetes convenientemente dispostos e inflammados em occasião opportuna. --Mas, emfim, demos que estão resolvidas todas as difficuldades, aplanados todos os obstaculos, e que se juntam ainda a vosso favor todas as probabilidades, admittamos que chegaes á Lua são e salvo, como é que haveis de voltar? --Não volto!» Ao ouvir tal resposta sublime em sua mesma simplicidade, a assembléa ficou muda. Mas aquelle silencio era mais eloquente do que quaesquer clamores de enthusiasmo. D'elle se aproveitou o desconhecido para lavrar o seu ultimo protesto. --É um suicidio infallivel, exclamou, e a vossa morte, que será apenas a morte de um insensato, nem ao menos servirá de proveito á sciencia! --Continuae, generoso desconhecido, prognosticaes, na verdade, por modo tão agradavel! --Ah! isto é de mais! exclamou o adversario de Miguel Ardan, nem sei porque tenho estado a perder o meu tempo em discussão tão pouco seria! Prosegui á vontade n'essa empreza louca. A culpa não é a vós que se deve tornar! --Oh! não faça ceremonia! --Não! a outrem cabe a responsabilidade inteira dos vossos actos. --Então a quem, se me faz favor? perguntou Miguel Ardan com voz imperiosa. --Ao ignorante que organisou essa tentativa tão impossivel como ridicula.» O ataque era directo. Barbicane que desde que o desconhecido interviera na discussão fazia esforços violentos para se conter, e «queimar o proprio fumo» como as fornalhas fumivoras de certas caldeiras, vendo-se agora claramente designado e com tamanha affronta, levantou-se precipitadamente e ía já sobre o adversario que o desafiava cara a cara, quando de subito se viu separado d'elle. Cem braços vigorosos arrancaram n'um momento o estrado, e o presidente do Gun-Club teve que partilhar com Miguel Ardan as honras do triumpho. O broquel era pesado, mas os que o levavam revezavam-se de continuo, disputando, lutando todos e combatendo para prestarem com os proprios hombros decidido apoio á manifestação. E todavia o desconhecido não se aproveitára do tumulto para se escapar. E porventura teria podido faze-lo, rodeado como estava por aquella multidão compacta? Por certo que não. Caso é que se conservára na primeira fila, e de braços cruzados devorava com os olhos o presidente Barbicane. Este por sua parte não o perdia de vista; os olhares d'aquelles dois homens estavam em cruzamento permanente como duas espadas frementes. Os clamores da multidão immensa mantiveram-se no _maximum_ de intensidade durante todo o tempo que durou a marcha triumphal. Miguel Ardan deixava-se levar com evidente satisfação ao sabor das turbas. Irradiava-lhe do rosto a alegria. Por vezes o estrado parecia jogar de pôpa a proa, e de bombordo a estibordo como um navio batido pelas ondas. Mas os dois heroes do _meeting_ que tinham pé de marinheiro, nem vacillavam; e chegou-lhes a nave sem avaria ao porto de Tampa-Town. Miguel Ardan conseguiu, por fortuna, escapar-se aos ultimos amplexos e apertos de mão dos seus vigorosos admiradores; safou-se para o hotel _Franklin_, subiu com presteza para o quarto, e metteu-se rapidamente na cama, emquanto um exercito de cem mil homens velava debaixo das janellas. N'aquella mesma hora passava-se entre o personagem mysterioso e o presidente do Gun-Club uma scena curta, porém grave e decisiva. Barbicane apenas se vira livre, caminhára direito ao adversario. «Vinde!» lhe disse com voz breve. O outro seguiu-o para o caes e, dentro em pouco, acharam-se a sós á entrada de um _Warfe_ que deitava para Jone's-Fall. Chegados áquelle logar miraram-se os dois inimigos ainda então desconhecidos um para o outro. «Quem sois vós?» perguntou Barbicane. --Sou o capitão Nicholl. --Já o suspeitava. Até este momento nunca o acaso nos proporcionára occasião de nos vermos frente a frente... --Busquei-a eu! --Insultastes-me! --E em publico. --Haveis de dar-me satisfação do insulto! --Já. --Não. Desejo que se passe tudo secretamente e só entre nós. Ha um bosque situado a tres milhas de Tampa-Town, o bosque de Skersnow. Conheceis-lo? --Conheço. --Será do vosso agrado entrar lá ámanhã ás cinco da manhã por determinado lado?... --Sim, se á mesma hora lá entrardes pelo outro. --E que não esqueça o _rifle_? disse Barbicane. --«Tanto como vós haveis de esquecer o vosso», respondeu Nicholl. Pronunciadas friamente estas palavras, o presidente do Gun-Club e o capitão separaram-se. Barbicane voltou para casa, mas em vez de descansar por algumas horas, passou a noite a buscar meios de evitar a repercussão do tiro dentro do projectil, a resolver o difficil problema que Miguel Ardan apresentára na discussão do _meeting_. CAPITULO XXI COMO UM FRANCEZ ARRANJA UMA PENDENCIA DE HONRA Emquanto entre o presidente e o capitão se discutiam as convenções do duello, duello terrivel e selvagem, em que cada um dos adversarios se transforma em caçador de outro homem, repousava Miguel Ardan das fadigas do triumpho. Repousar não é na realidade o termo adequado, porque as camas na America podem disputar primazias em dureza com qualquer mesa de marmore ou de granito. Dormia por consequencia Ardan, mas mal, dava voltas e voltas entre os dois guardanapos que lhe serviam de lençoes, sonhando que installava dentro do seu projectil uma camasinha mais _comfortable_, quando um estrepito violento veio arranca-lo da região dos sonhos. Empurravam-lhe a porta com pancadas desordenadas, que pareciam dadas com instrumento de ferro. De envolta com aquelle tumulto excessivamente matutino, ouviam-se formidaveis berros. «Abre! abre, pelo amor de Deus! Ardan não tinha motivo algum para annuir a um pedido feito com tanto arruido. Não obstante levantou-se, e foi abrir a porta, no instante em que ella estava para ceder aos esforços do teimoso visitante. Irrompeu pelo quarto dentro o secretario do Gun-Club, que nem uma bomba teria entrado com maior semcerimonia. «Hontem á noite, prorompeu J.-T. Maston _ex abrupto_, o nosso presidente foi insultado em publico no _meeting_! Desafiou o adversario, que é nem mais nem menos que o capitão Nicholl! Batem-se esta manhã no bosque de Skersnow! De tudo fui informado pela propria bôca de Barbicane! A morte d'este é a aniquilação de nossos projectos! Por consequencia é necessario pôr impedimento a tal duello! Um só homem n'este mundo exerce no espirito de Barbicane influencia bastante para desvia-lo de seus intentos, e esse homem é Miguel Ardan!» Emquanto Maston assim dizia, Miguel Ardan, que logo desistíra de o interromper, precipitára-se dentro das vastas calças, e menos de dois minutos eram passados, já os dois amigos chegavam á desfilada aos suburbios de Tampa-Town. [Figura: No centro da teia debatia-se uma avesinha (pag. 193).] No decurso d'aquella rapida carreira é que Maston foi pondo Ardan mais ao facto da situação. Contou-lhe então as verdadeiras causas da inimisade de Barbicane e Nicholl, como era de antiga data tal inimisade, e por que rasões, nunca até áquella occasião, Barbicane e o capitão tinham logrado encontrar-se cara a cara, graças aos esforços de communs amigos; disse-lhe tambem que não havia ali mais do que rivalidade de bala e chapa, e finalmente que a scena do _meeting_ fôra apenas a occasião de ha muito procurada por Nicholl, para satisfazer antigos rancores. [Figura: Mappa da Florida (pag. 113).] Nada ha mais terrivel que a fórma de duello peculiar da America, em que os contendores se buscam por entre as matas, se espreitam pelas abertas das çarças, e atiram um ao outro, no meio das devezas, como quem atira a um animal feroz. N'esse momento é que ambos os adversarios devem ter inveja das maravilhosas qualidades que caracterisam os indios das planicies, da rapida intelligencia e da engenhosa astucia de que estes são dotados, do faro e da peculiar percepção dos rastos que os distinguem, quando seguem pela pista o inimigo. Em taes occasiões é que o menor erro, a menor hesitação, um passo só que seja, dado em falso, podem trazer por consequencia a morte. Em taes recontros levam por vezes os yankees de companhia os seus cães, e perseguem-se assim durante horas inteiras, desempenhando a um tempo os papeis de caça e caçador. «Que diabo de gente são estes americanos! exclamou Miguel Ardan, depois que o companheiro acabou de lhe descrever com extrema energia todas aquellas scenas. --Somos assim tal qual, respondeu com modestia J.-T. Maston; mas vamos apressando o passo.» Entretanto por mais que Maston e Ardan corressem através da planicie, ainda humida do orvalho da noite, passando arrozaes e ribeiros, tomando sempre pelo caminho mais curto, não lograram chegar ao bosque de Skersnow, antes das cinco horas e meia. Barbicane já havia boa meia hora que devia ter-lhe passado a orla. Trabalhava ali um velho _bushman_, cuja occupação era desfazer em cavacos as arvores que derrubava com o machado. Maston correu para elle a gritar: «Vistes entrar na mata um homem armado de _rifle_, Barbicane, o presidente... o meu melhor amigo?...» O digno secretario do Gun-Club pensava ingenuamente que o seu presidente havia por força de ser conhecido do mundo inteiro. Mas o _bushman_ não deu mostras de o comprehender. «Um caçador, disse então Ardan. --Um caçador, sim vi, respondeu o _bushman_. --E ha muito? --Ha de haver uma hora. --Já é tarde! clamou Maston. --E ouvistes tiros de espingarda? perguntou Miguel Ardan. --Nada. --Nem um só? --Nem um. Não me parece que o tal caçador tenha feito lá muito grande caçada! --Que se ha de fazer? disse Maston. --É entrar na mata, mesmo correndo risco de apanhar algum balasio, que não nos fosse destinado. --Ah! exclamou Maston com accentuação, de cuja franqueza não era permittido duvidar-se, antes eu queria apanhar dez balas na minha propria cabeça, de que acertasse uma só na de Barbicane. --Então ávante!» replicou Ardan, apertando a mão do companheiro. Segundos depois desappareciam os dois amigos na espessura da mata, que era formada de cyprestes-gigantes, sycomoros, tulipeiras, oliveiras, tamarindos, carvalheiras e magnolias. Entrelaçavam-se as ramadas d'aquellas differentes arvores, em tão emmaranhada confusão, que não consentiam que a vista alcançasse muito ao longe. Miguel Ardan e Maston caminhavam um junto do outro, passando em silencio por entre as hervas altas, abrindo caminho por entre agudas silvas e vigorosas trepadeiras, inquirindo com o olhar as moitas ou as ramadas perdidas por entre a sombria espessura da folhagem, e esperando a cada instante ouvir a temivel detonação dos _rifles_. Rasto de Barbicane, na sua passagem através do bosque, é que não logravam reconhecer. Caminhavam ás cegas por aquellas veredas apenas pisadas, em que qualquer indio teria seguido passo por passo a marcha do adversario. Passada uma hora em pesquizas inuteis, fizeram alto os dois companheiros. Redobrára-lhes a inquietação de espirito. «É porque está tudo acabado, disse Maston desanimado. Barbicane não era homem que jogasse astucias com o inimigo, nem que lhe armasse laços ou usasse de manobras! É franco e corajoso de mais para isso. Caminhou em frente, direito ao perigo, e por certo a tal distancia do _bushman_ que o vento levou, sem que este a ouvisse, a detonação das armas de fogo! --Mas nós! respondeu Miguel Ardan. Desde que entrámos no bosque não haviamos de ter ouvido alguma cousa! --E se chegámos tarde! exclamou Maston com intonação de desespero. --Miguel Ardan como não tinha replica que dar-lhe proseguiu com Maston na marcha interrompida. De tempos a tempos davam grandes gritos: chamavam ora por Barbicane, ora por Nicholl; mas nenhum dos dois adversarios respondia ás vozes d'elles. Apenas alegres bandos de aves, despertadas pelo ruido, desappareciam por entre as ramadas, ou algum gamo assustado fugia precipitado através da mata. Por mais uma hora ainda se prolongaram as pesquizas. Já fôra explorada a maior parte da mata, e nada que revelasse a presença dos combatentes. Era caso para pôr em duvida as asserções do _bushman_, e Ardan pensava já em desistir de continuar por mais tempo uma busca inutil, quando, de subito, Maston estacou. --Chit! murmurou elle. Está acolá alguem! --Alguem? respondeu Miguel Ardan. --Sim! um homem! Parece estar immovel. Já não tem o _rifle_ nas mãos. Que estará fazendo? --Mas reconheces-lo? perguntou Ardan, a quem, myope como era, de pouco servia a vista em tal conjunctura. --Sim! sim! Lá se volta, respondeu Maston. --E é? --O capitão Nicholl! --Nicholl! clamou Miguel Ardan, que sentiu apertar-se-lhe violentamente o coração. «Nicholl sem arma! Seria por nada ter já que receiar do adversario? «Vamos ter com elle, disse Miguel Ardan; ficaremos desenganados.» Mas apenas teriam caminhado uns cincoenta passos, elle e o companheiro estacaram, para mais attentamente examinarem o capitão. Cuidavam encontrar um homem sequioso de sangue, todo entregue a pensamentos de vingança! Ao verem-no pararam estupefactos. Distendia-se entre dois tulipeiros gigantescos uma rede de apertada malha; mesmo no centro da teia, debatia-se uma avesinha presa pelas azas, soltando lastimosos gritos. O passarinheiro que assim dispozera a inextricavel rede não fôra um ser humano, senão uma peçonhenta aranha, peculiar d'aquellas regiões, de volume igual ao de um ovo de pomba e dotada de pernas enormes. Mas o horrendo animalejo, no momento em que ía arrojar-se sobre a presa, tivera de retirar, buscando asylo nas altas ramadas do tulipeiro, porque por sua vez fôra ameaçado por temivel inimigo. Effectivamente, Nicholl largára a espingarda e esquecido dos perigos da situação, tratava de desembaraçar com extremos de delicadeza a victima enlaçada nas redes da monstruosa aranha. E quando concluiu a obra, deu a liberdade á pequena avesinha, que bateu alegremente as azas e desappareceu. Ainda Nicholl contemplava enternecido a avesinha que fugia de ramo em ramo, quando ouviu as seguintes palavras ditas em tom de commoção: «Isto é que é homem valente e de alma bem formada!» Voltou-se, e encarou com Miguel Ardan, que repetia em todas as intonações: «É homem que merece ter amigos!» --Miguel Ardan! exclamou o capitão. Que vindes fazer aqui, senhor? --Apertar-vos a mão, Nicholl, e impedir que mateis Barbicane, ou que sejaes morto por elle. --Barbicane! exclamou o capitão, Barbicane, que eu procuro ha duas horas sem lograr encontra-lo! Onde estará elle escondido? --Nicholl, disse Miguel Ardan, isso é falta de cortezia! deve sempre prestar-se respeito ao adversario; descansae, que se Barbicane é vivo havemos de encontra-lo, e com tanta maior facilidade que, se é que não passou o tempo como vós, entretido em soccorrer alguma avesinha opprimida, deve andar em vossa procura. Mas quando dermos com elle, sou eu, Miguel Ardan quem vo-lo diz, não é de duellos que se ha de tratar. --Entre mim e o presidente Barbicane, respondeu com gravidade Nicholl, ha rivalidades de tal ordem, que só a morte de um dos dois... --Ora vamos, vamos, replicou Miguel Ardan, homens valentes e almas bem formadas como vós outros, é possivel que se detestem, mas por certo tambem se estimam. Não haveis de bater-vos. --Hei-de bater-me, senhor! --Isso é que não. --Capitão, disse então J.-T. Maston com generoso animo, sou amigo do presidente, o seu _alter ego_, outro elle; se desejaes absolutamente matar alguem, disparae sobre mim, que é exactamente o mesmo. --Senhor, disse Nicholl apertando com mão convulsa o _rifle_, essas zombarias... --O amigo Maston não está zombando, respondeu Miguel Ardan, e eu cá por mim comprehendo perfeitamente a sua idéa de se fazer matar em vez do homem de quem é amigo! Mas nem elle nem Barbicane hão de cair aos tiros do capitão Nicholl, porque tenho a fazer aos dois rivaes uma proposta por tal fórma seductora, que por certo hão de acceita-la com enthusiasmo. --Que proposta é então essa? perguntou Nicholl com visivel incredulidade. --Haja paciencia, respondeu Ardan, não posso fazer a communicação senão na presença de Barbicane. --Pois vamos por elle, exclamou o capitão. No mesmo instante pozeram-se os tres a caminho; o capitão desarmou o _rifle_, po-l'o ao hombro, e caminhou com passo soffreado, sem dizer palavra. Por espaço de meia hora ainda, foram inuteis todas as pesquizas. Maston sentia-se dominado por sinistro presentimento, e observava Nicholl com severidade, perguntando a si proprio se não estaria já satisfeita a vingança do capitão, e Barbicane jazendo ferido de bala ao pé de alguma moita ensanguentada. Miguel Ardan parecia dominado pelas mesmas idéas, e ambos inquiriam com os olhos o capitão Nicholl, quando Maston estacou de subito. Encostado ao tronco de uma catalpa gigantesca via-se a uns vinte passos o busto immovel de um homem com o corpo meio occulto por entre as hervas. «É elle!» murmurou Maston. Barbicane nem se movia. Ardan olhou fito para os olhos do capitão, mas este não trepidou. Ardan deu alguns passos, gritando: «Barbicane! Barbicane!» Nada de resposta. Ardan encaminhou-se precipitado para o amigo, mas no momento em que ía agarra-lo pelo braço, estacou de repente, soltando uma exclamação de surpreza. Barbicane, de lapis em punho, escrevia fórmulas e traçava figuras geometricas n'uma carteira. A espingarda, essa jazia desarmada no chão. O homem de sciencia, absorto pelo trabalho, esquecendo por sua parte duello e vingança, nada víra nem ouvíra. Mas quando Miguel Ardan lhe poz a mão nas d'elle, levantou-se e olhou com ar de espanto. --Ah! exclamou por fim, tu aqui! Encontrei, amigo! encontrei! --O que? --Os meios! --Mas que meios? --Meios de annullar o effeito da repercussão do tiro á partida do projectil! --Realmente? disse Miguel Ardan, olhando de soslaio para o capitão. --É verdade! agua, agua pura servirá de almofada. Ah! Maston! exclamou Barbicane, tambem vós! --Em propria pessoa, respondeu Miguel Ardan, e dá-me licença que te apresente tambem por esta occasião o estimavel capitão Nicholl! --Nicholl! exclamou Barbicane, levantando-se de subito. Perdão, capitão, tinha-me esquecido... mas estou prompto...» Miguel Ardan metteu-se de permeio sem dar tempo aos dois inimigos para que se interpellassem. «Por vida minha! disse Ardan, que foi uma verdadeira felicidade que dois homens de alma generosa e elevada como vós dois se não tivessem encontrado mais cedo! Tinhamos agora que estar chorando um dos dois! Mas graças a Deus, que se metteu no negocio, já nada ha que receiar. Quando dois homens esquecem os seus odios para se entregarem á resolução de problemas de mechanica ou fazer partidas ás aranhas, é porque taes odios não são perigosos para ninguem.» E Miguel Ardan narrou ao presidente a aventura do capitão. --«Ora perguntarei eu agora, disse Miguel em conclusão, se duas boas pessoas como vós outros foram feitas para se esmigalharem reciprocamente a cabeça a tiros de carabina?» Havia n'aquella situação, um tanto ridicula, alguma cousa de tão inesperado, que Barbicane e Nicholl não sabiam como comportar-se um em relação ao outro. Miguel, que bem o percebeu, resolveu precipitar a reconciliação. «Estimaveis amigos, disse deixando apontar aos labios o mais agradavel dos sorrisos, nunca houve entre vós dois senão equivocos. Nada mais. Pois bem! para dar prova de que todas as contendas estão terminadas, e visto como sois homens que não temem arriscar a pelle, acceitae sem hesitar a proposta que vou fazer-vos. --O amigo Barbicane pensa que o seu projectil ha de ir direitinho á Lua? --Certamente que sim, replicou o presidente. --E o amigo Nicholl está persuadido que o projectil ha de caír na Terra. --Estou seguro d'isso, exclamou o capitão. --Muito bem! proseguiu Miguel Ardan. Eu é que não tenho pretensões a pôr-vos de accordo, mas sómente vos direi mui lhana e simplesmente: Vinde commigo, para vermos assim se ficâmos ou não a meio caminho. --Hum!» exclamou J.-T. Maston estupefacto. Ao ouvirem tão inesperada proposta, os dois rivaes levantaram os olhos um para o outro. Observavam-se attentamente. Barbicane aguardava a resposta do capitão. Nicholl estava á espreita da primeira palavra do presidente. «Então? disse Miguel Ardan com intonação das mais convidativas. Visto nada haver que receiar da repercussão!... --Acceito! exclamou Barbicane. Mas, por depressa que esta palavra fosse pronunciada pelo presidente, tambem Nicholl a concluira ao mesmo tempo. --Hurrah! bravo! viva! hip! hip! hip! clamou Miguel Ardan estendendo as mãos aos dois adversarios. E agora que a pendencia está pacificamente terminada, meus amigos, consintam-me que os trate á franceza. Vamos almoçar.» CAPITULO XXII O NOVO CIDADÃO DOS ESTADOS UNIDOS N'aquelle mesmo dia toda a America foi informada a um tempo do desafio de Barbicane com o capitão Nicholl, e da aventura singular que lhe puzera termo. O papel que desempenhára n'aquelle recontro o cavalheiroso europeu, a proposta inesperada que viera cortar todas as dificuldades, a acceitação simultanea dos dois rivaes, aquella conquista do continente lunar, para emprehender a qual íam marchando de accordo França e Estados Unidos, tudo se reuniu para ainda mais augmentar a popularidade de Miguel Ardan. É sabido qual o phrenesi com que os yankees se apaixonam por qualquer individualidade. Imagine-se qual seria a paixão desencadeada em favor do audacioso francez, n'aquelle paiz onde até os mais graves magistrados não duvidam puxar á carruagem de qualquer dansarina para a levarem em triumpho. Se não desatrelaram os cavallos de Ardan, foi provavelmente porque elle os não tinha, que no demais foram-lhe prodigalisadas todas as provas imaginaveis de enthusiasmo. Não houve um só cidadão que senão unisse a elle de alma e coração. _Ex pluribus unum_, que é a divisa dos Estados Unidos. A partir d'aquelle dia, não teve Miguel Ardan um só momento de socego. Vinham procura-lo deputações de todos os cantos da União, que o attribulavam e que não promettiam ter fim, nem tregua. E o mais é que tinha que as receber, com vontade ou sem ella. Quantos apertos de mão deu, a quanta gente tratou por tu, é cousa que nem póde calcular-se. Dentro em pouco tempo estava exhausto de forças, a voz já mal lhe saía dos labios em sons inintelligiveis, rouca dos innumeraveis _speechs_; ía arranjando uma gastro-enterite de tanto _toast_ que se viu obrigado a fazer a todos os condados da União. Um triumpho tal teria subido á cabeça a outro qualquer logo no primeiro dia, mas Ardan teve artes de nunca passar de uma espirituosa e encantadora semi-ebriedade. Entre as deputações de todos os generos que por aquella occasião o assaltaram, não soube esquecer quanto devia ao futuro conquistador da Lua, a dos «lunaticos». Certo dia, alguns d'estes pobres diabos, abundantes na America, vieram ter com elle e pedir-lhe que os levasse comsigo para o paiz natal. Alguns houve que affirmaram saber fallar a «lingua selenita» e que até a quizeram ensinar a Miguel Ardan. Prestou-se este de bom grado a tão innocente mania, e até se encarregou de recados e encommendas para os amigos que os pobres diabos diziam ter na Lua. «Singular loucura, disse Ardan a Barbicane, depois que os despediu, e loucura que ataca as mais das vezes as intelligencias mais agudas. Dizia-me Arago, um dos nossos mais illustres homens de sciencia, que muitas pessoas, aliás extremamente sensatas e cautelosas nas suas concepções, se deixam arrastar a grande exaltação e a incriveis singularidades, todas as vezes que se occupam da Lua. E tu não dás credito á influencia da Lua sobre as doenças? [Figura: Parti commigo para vermos (pag. 197).] --Pouco, respondeu o presidente do Gun-Club. [Figura: O gato tirado da bomba (pag. 206).] --Tambem eu não; apesar de que a historia tem registrado factos que, pelo menos, são para causar admiração. Assim em 1693, durante certa epidemia, morreu muita mais gente no dia 21 de janeiro, por occasião de um eclipse. O celebre Bacon desmaiava nas occasiões de eclipse da Lua, e só voltava a si depois da completa emersão do astro. O rei Carlos VI recaíu por seis vezes em demencia, no decurso do anno de 1399, e sempre em occasião de Lua nova ou de Lua cheia. Affirmam alguns medicos que a epilepsia deve classificar-se entre as doenças que acompanham as phases da Lua. As molestias nervosas tambem por vezes parecem depender da influencia lunar. Conta Mead que havia no seu tempo um menino que entrava em convulsões logo que a Lua entrava em opposição. Gall notou que a exaltação das pessoas debeis cresce duas vezes em cada mez, uma no _novi-lunio_, outra no _pleni-lunio_. Finalmente, ha mais de um milheiro de observações d'este genero, em respeito a vertigens, febres malignas e ataques de somnambulismo, que todos tendem a provar que o astro das noites gosa de mysteriosa influencia sobre o curso das doenças terrestres. --Mas como? porque? perguntou Barbicane. --Porque? respondeu Ardan. Á fé que te hei de dar a mesma resposta que Arago repetia dezenove seculos depois de Plutarco: «Talvez seja exactamente por não ser verdade!» No meio do seu triumpho, não logrou Miguel Ardan escapar-se a nenhuma das massadas inherentes ao estado de homem celebre. Os especuladores de vogas e celebridades de occasião tentaram pô-lo em exhibição. Barnum chegou a offerecer-lhe um milhão para adquirir o direito de o transportar de cidade em cidade, em todos os Estados Unidos, e mostra-lo qual animal raro. A resposta de Miguel Ardan foi alcunha-lo de _cornac_, e manda-lo a elle Barnum... passeiar. Todavia, recusando-se aliás a satisfazer por tal fórma a curiosidade publica, deixou Ardan pelo menos que seus retratos corressem pelo mundo inteiro e occupassem logar de honra em todos os albums; d'elles se tiraram provas de todas as dimensões, desde as de tamanho natural até as da grandeza microscopica da estampilha do correio. Estava ao alcance de toda a gente possuir a imagem do heroe, em qualquer das posições imaginaveis; cabeça só, meio corpo, corpo inteiro, de frente, de perfil, de tres quartos e até de costas. Tirou-se mais de milhão e meio de exemplares. A occasião era bem boa para se desfazer em reliquias, mas Ardan é que a não soube aproveitar. Só a vender os cabellos a dollar cada um, podia fazer uma fortuna, e mais já não eram muitos! A popularidade, querendo fallar com inteira franqueza, não lhe era desagradavel. Pelo contrario, Ardan punha-se á disposição do publico, e correspondia-se com o universo inteiro. Por toda a parte se contavam, repetiam e propalavam os ditos conceituosos d'elle, muito principalmente os que elle nem tinha proferido. Como é uso, por isso mesmo que n'essa parte lhe sobrava a riqueza, é que mais lhe queriam dar ou emprestar. E não sómente soube tornar propicios os homens, senão tambem as mulheres. Bastaria que lhe tivesse passado pela cabeça a phantasia de «entrar no rol dos homens serios», para ter arranjado um numero infinito de «bellos casamentos». Principalmente as velhas _misses_, d'estas que ha bons quarenta annos se mirravam por não casar, todas devaneiavam dia e noite diante das photographias d'elle. Certo é que teria achado companheiras aos centos, aindaque lhes impuzesse como condição acompanharem-n'o na aerea viagem; que as mulheres quando lhes não dá para de tudo terem medo, são verdadeiramente intrepidas. Porém, como Ardan não tinha intento de fazer estirpe no continente lunar, nem de para lá transportar raça atravessada de francez e americano, recusou-se formalmente a todos os enlaces. «Ir eu lá para cima, dizia elle, fazer o papel de Adão com uma filha de Eva, obrigado! E se lá encontrasse serpentes!...» Ardan, logoque alfim logrou subtrahir-se ás alegrias exageradamente repetidas do triumpho, foi com os amigos fazer uma visita á Columbiada, que bem lh'o merecia. De mais a mais, depois que Ardan vivia em contacto com Barbicane, J.-T. Maston e _tutti quanti_ tinha-se tornado muito sabedor em questões de balistica. O seu maior prazer consistia então em repetir aos estimaveis artilheiros, que não eram elles mais do que amaveis e sabios assassinos. Ácerca de tal assumpto nunca se lhe esgotava a musa epigrammatica. No dia em que visitou a Columbiada, admirou-a com enthusiasmo e desceu até ao fundo da alma do gigantesco morteiro, que em breve havia de arremessa-lo para o astro das noites. «Este canhão ao menos, disse, não ha de fazer mal a ninguem; o que da parte de um canhão já não é pouco para admirar. Mas não me venham cá fallar d'esses machinismos que destroem, que incendeiam, que despedaçam, que matam, e ainda menos dizer-me que têem «alma», que lá isso é que eu nunca hei de acreditar!» Vem a pêllo narrar n'este logar um caso que diz respeito a J.-T. Maston. Quando o secretario do Gun-Club ouviu que Nicholl e Barbicane acceitavam a proposta de Miguel Ardan, resolveu lá no intimo juntar-se com elles, e fazer assim «uma parceirada de quatro»; um bello dia pediu para entrar na viajata. Barbicane, sentindo immenso ter que lhe responder com uma recusa, fez-lhe ver que o projectil não tinha lotação para tanto passageiro. J.-T. Maston, desesperado, foi ter com Miguel Ardan, que o convidou a resignar-se, fazendo até valer certos argumentos _ad hominem_. «Ora pensa bem, meu velho Maston, e não vás tomar as minhas palavras em mau sentido; mas aqui para nós, a verdade é que estás muito incompleto para te apresentar assim na Lua! --Incompleto! exclamou o velho invalido. --Sim! meu estimavel amigo! Ora põe-te no caso de encontrarmos habitantes lá em cima. Quererias tu dar-lhes tão triste idéa do que se passa cá por baixo, patentear-lhe o que é a guerra, demonstrar-lhes que empregâmos por cá o melhor do nosso tempo a devorar-nos, a comer-nos, a quebrar-nos reciprocamente pernas e braços, e isto n'um globo que poderia alimentar cem mil milhões de habitantes, e que apenas tem mil e duzentos milhões d'elles? Ora vamos, meu digno amigo, isso era até caso de nos pôrem de lá fóra, por tua causa! --Mas se vós lá chegardes feitos em pedaços, replicou J.-T. Maston, estareis tão incompletos como eu! --De certo, respondeu Miguel Ardan, mas a verdade é que não havemos de chegar lá feitos em pedaços!» Effectivamente, uma experiencia preparatoria, que se tentou a 18 de outubro, dera optimo resultado e fizera conceber as mais fundadas esperanças. Barbicane, que desejava conhecer exactamente o effeito da repercussão do tiro no momento da partida do projectil, fez trazer do arsenal de Pensacola um morteiro de trinta e duas pollegadas (0,75 centimetros), que installaram na praia do molhe de Hillisboro, para que a bomba viesse a cair no mar e o choque da quéda fosse amortecido pela agua, visto tratar-se sómente de experimentar ácerca do abalo á partida e não do choque á chegada. Foi preparado com os maiores cuidados para a realisação d'esta curiosa experiencia um projectil ôco. Estofava-lhe as paredes internas um expesso acolchoado assente em cima de uma rede de molas de aço da mais fina tempera. Era um verdadeiro ninho cuidadosamente almofadado. «Que pena não caber eu lá dentro!» dizia J.-T. Maston, lamentando que o proprio volume lhe não consentisse tentar a aventura. N'aquella encantadora bomba, que fechava por meio de uma tampa de rosca, introduziram primeiro um gato, depois um esquilo pertencente a J.-T. Maston, e a que o secretario do Gun-Club tinha particular affeição. Mas havia desejos de saber como é que aquelle animalsinho, pouco sujeito a vertigens, supportaria a viagem de experiencia. Carregou-se o morteiro com cento e sessenta libras de polvora, e collocada a bomba na peça, fez-se fogo. No mesmo instante elevou-se rapidamente o projectil, descreveu magestosamente a sua parabola, chegou á maxima altura de approximadamente mil pés e foi-se abysmar por entre as vagas, descendo por graciosa curva. Dirigiu-se sem perda de tempo uma embarcação para o logar onde caira a bomba, precipitaram-se habeis mergulhadores debaixo de agua e amarraram cabos ás auriculas da bomba que de prompto foi içada a bordo. Nem cinco minutos tinham decorrido entre o momento em que os animaes tinham sido encerrados na bomba e aquelle em que se lhes desatarraxou a tampa da prisão. Ardan, Barbicane, Maston e Nicholl estavam na embarcação e assistiram á operação com um sentimento de interesse facil de conceber. Apenas se abriu a bomba, saltou fóra o gato um tanto machucado é verdade, mas cheio de vida, e sem ares de quem regressava de tal expedição. Mas a respeito de esquilo é que nada. Procurou-se. Nem rasto. A final não houve mais remedio de que reconhecer a verdade. O gato tinha comido o companheiro de viagem. J.-T. Maston ficou extremamente contristado com a perda do pobre esquilo, e assentou que devia inscrever-lhe o nome no martyrologio da sciencia. Caso é que depois d'aquella experiencia desappareceram todas as hesitações e todos os temores. Demais, os planos de Barbicane ainda haviam de aperfeiçoar o projectil e annullar quasi completamente os effeitos da repercussão. Portanto nada mais restava a fazer, senão partir. Dois dias depois Miguel Ardan recebeu uma mensagem do presidente da União, honra a que se mostrou notavelmente sensivel. O governo, tomando exemplo do que se praticára para com o cavalheiroso marquez de La Fayette, compatriota de Ardan, conferira a este o titulo de cidadão dos Estados Unidos da America. CAPITULO XXIII O WAGON-PROJECTIL Depois que ficára concluida a celebre Columbiada, volvêra-se immediatamente a attenção publica para o projectil, novo vehiculo destinado a conduzir através do espaço os tres ousados aventureiros. A ninguem esquecêra, que Miguel Ardan tinha pedido, no telegramma de 30 de setembro, que se modificassem os planos combinados pelos membros da commissão. Pensava então o presidente Barbicane, e com justa rasão, que era de pouca importancia a fórma do projectil, porque depois de atravessar a atmosphera em poucos segundos, havia de realisar o resto do percurso no vasio absoluto. Adoptára por consequencia, a commissão a fórma espherica, para que a bala podesse girar sobre si propria e comportar-se como lhe acudisse á phantasia. Mas logoque a transformavam em vehiculo, o caso era outro. Miguel Ardan nenhum prazer tinha por certo em fazer viagem á maneira de esquilo; desejava subir, sim, mas de cabeça para cima e de pés para baixo, com tanta dignidade e compostura como se viajára na barquinha de qualquer balão; seguramente com maior rapidez, mas sem se ver obrigado a fazer uma serie de cambalhotas menos decorosas. [Figura: Chegada do projectil a Stone's-Hill (pag. 210).] Mandaram-se portanto novos planos á casa Breadwill e C.^a de Albany, e com expressa recommendação de os pôr sem demora em execução. [Figura: J.-T. Maston tinha engordado! (pag. 217).] O projectil fundiu-se, com as modificações apontadas, a 2 de novembro, e foi expedido immediatamente para Stone's-Hill pela via ferrea de leste. A 10, chegou sem accidente ao logar a que era destinado. Miguel Ardan, Barbicane e Nicholl esperavam com a maior impaciencia «o wagon-projectil» em que haviam de tomar passagem para voarem á descoberta de um mundo novo. O projectil, força é confessá-lo, era uma peça de metal magnifica, um producto metallurgico que dava honra ao engenho industrial dos americanos. Pela vez primeira fôra o aluminium obtido em massa tão consideravel, e esse resultado só por si merecia com justiça ser considerado como um prodigio. O precioso projectil scintillava aos raios do sol. Quem o visse com aquellas suas fórmas de metter respeito, coberto com o seu chapéu conico, facilmente o tomaria por uma d'aquellas macissas torres em fórma de pimenteiro, que os architectos da idade media suspendiam dos angulos dos castellos fortificados. Só lhe faltavam grimpa e setteiras. «Está-se-me figurando, exclamou Miguel Ardan, que vae d'ali saír um homem de armas com o seu arcabuz e o seu corsalete de aço. Havemos de estar lá dentro quaes senhores feudaes. Se levassemos alguma artilheria poderiamos d'ali fazer frente a todos os exercitos selenitas, se é que ha exercitos na Lua. --Com que então agrada-te o vehiculo? perguntou Barbicane ao amigo. --Sim! Sim! de certo, respondeu Miguel que o estava examinando como artista. --Sinto unicamente que não tenha as fórmas mais esbeltas e ligeiras, o cone mais gracioso; deviam ter-lhe posto como remate um florão de ornatos de metal lavrado, com uma chimera, por exemplo, uma carranca, ou uma salamandra a saír do fogo com as azas desdobradas e as fauces abertas... --E para que servia tudo isso? disse Barbicane, cujo espirito positivo era pouco sensivel ás bellezas da arte. --Para que servia, amigo Barbicane! Ai de mim! só pelo facto de m'o perguntares fico quasi seguro de que nunca o has de vir a comprehender! --Vae sempre dizendo, estimavel companheiro. --Pois ouve lá; é minha opinião que devemos sempre attender um pouco á arte em tudo quanto fazemos. Conheces acaso uma comedia india intitulada o _Carro do menino_? --Nem de nome, respondeu Barbicane. --Tambem não admira, proseguiu Miguel Ardan. Sabe pois, que n'essa comedia ha um ladrão que na occasião em que está para furar a parede de uma casa, cogita se ha de dar ao buraco a fórma de lyra, de flor, de ave ou de amphora? Ora responde lá, amigo Barbicane, se n'aquella epocha fosses membro do jury, condemnavas o tal ladrão? --Sem hesitar, respondeu o presidente do Gun-Club, e com a circumstancia aggravante do arrombamento. --Pois eu cá absolvia-o, amigo Barbicane! E aqui está a rasão porque tu nunca me has de comprehender! --Nem trato d'isso, meu valente artista. --Pelo menos, proseguiu Ardan, já que o exterior do nosso _wagon-projectil_ fica áquem dos meus desejos, hão de me dar licença que o mobile a meu geito e com todo o luxo que quadra a embaixadores da Terra! --Lá a esse respeito, meu caro Miguel, respondeu Barbicane, farás o que te dictar a phantasia, deixar-te-hemos fazer o que melhor te aprouver.» O presidente do Gun-Club porém, antes de passar ao agradavel, cuidára do util, e conseguira fazer applicar os meios por elle inventados para diminuir os effeitos da repercussão, com perfeita intelligencia. Tinha Barbicane pensado, e com rasão, que nenhuma especie de molas teria força bastante para amortecer o choque, e no decurso d'aquelle famoso passeio da matta de Skersnaw, conseguíra resolver aquella grande difficuldade por uma fórma engenhosa. Á agua é que elle contava ser devedor de tão assignalado serviço. Eis por que maneira: Encher-se-ia o projectil, até a altura de tres pés, de uma camada de agua destinada a aguentar um disco de madeira perfeitamente estanque que escorregasse com attrito pelas paredes internas do projectil. Em cima d'aquella especie de jangada é que haviam de ir collocados os viajantes. A massa liquida havia de ser dividida por tabiques horisontaes que o choque á partida espedaçaria successivamente. N'esse mesmo momento todos os lençoes de agua, desde o debaixo até ao de cima, saíndo por tubos de despejo para a parte superior do projectil, fariam almofada; não podendo o disco, aliás guarnecido como era de possantes chapuzes, ir de encontro á culatra do projectil senão depois de terem sido successivamente esmagados os differentes tabiques. Por certo que os viajantes sempre haviam de soffrer violenta repercussão depois da saída completa da massa liquida, mas o primeiro choque havia de ser quasi completamente amortecido por aquella mola de grande potencia. Verdade é, que tres pés de altura de agua n'uma área de cincoenta e quatro pés quadrados haviam de pesar perto de onze mil e quinhentas libras; mas a força elastica dos gazes accumulados dentro da Columbiada na opinião de Barbicane, havia de ser bastante para vencer mais aquelle augmento de peso; demais o choque havia de expellir aquella agua toda em menos de um segundo, e o projectil de prompto retomaria o peso normal. Era isto o que o presidente do Gun-Club imaginára, esta a maneira por que pensava ter resolvido o importante problema do amortecimento da repercussão do tiro. De mais a mais, aquelle trabalho fôra comprehendido com perfeita intelligencia pelos engenheiros da casa Breadwill, e tambem maravilhosamente executado. Produzido o effeito desejado, e expellida a totalidade da agua, podiam os viajantes, desembaraçar-se com facilidade dos tabiques espedaçados, e desarmar o disco movel que os aguentára no momento da partida. As paredes superiores do projectil, essas eram cobertas de um acolchoado expesso de couro, assente sobre espiraes do mais fino aço, tão flexiveis como molas de relogio. Os tubos de esgoto escondidos por debaixo do acolchoado nem deixavam suspeitar que existiam. Tinham-se portanto tomado por aquella fórma todas as precauções imaginaveis para amortecer o primeiro choque, e, segundo dizia Ardan, quem ainda assim se deixasse esmagar, é porque era «de má raça.» Media o projectil, pela parte de fóra, doze pés de altura sobre nove de largura. E, para que não excedesse o peso calculado, tinham-lhe diminuido um pouco a espessura das paredes, e reforçado a culatra que tinha de aguentar toda a violencia dos gazes desenvolvidos pela deflagração do pyroxylo. Assim succede geralmente com as bombas e obuzes cylindro-conicos, cuja maior espessura é sempre na culatra. A entrada para aquella torre de metal era por uma estreita abertura reservada nas paredes do cone, similhante aos «buracos de homem» que têem as caldeiras a vapor, e que fechava hermeticamente por meio de uma chapa de aluminium, apertada da parte de dentro por possantes parafusos de pressão. Podiam portanto os viajantes saír á vontade da sua movel prisão, logoque lograssem chegar ao astro das noites. Mas o caso não estava só em ir, estava tambem em ir vendo pelo caminho. Nada mais facil. Por debaixo do acolchoado das paredes estavam quatro vigias com vidros lenticulares de grande espessura, duas abertas na parede circular do projectil, uma no fundo e outra no chapéu conico. Teriam portanto os viajantes toda a facilidade para observarem durante o percurso, quer a Terra que deixavam, quer a Lua que íam buscar, quer os espaços constellados do céu. As vigias estavam defendidas do choque á partida por chapas fortemente encaixadas, que era facil fazer caír para a parte de fóra desatarraxando porcas collocadas pela parte de dentro. Tornavam-se por aquella maneira possiveis quaesquer observações, sem que o ar contido no projectil podesse de lá saír. Todos aquelles mechanismos, admiravelmente construidos e collocados, trabalhavam com a maior facilidade; os constructores tambem não deram menor prova de intelligencia na arrumação interna do wagon-projectil. Para a conducção da agua e viveres necessarios para os tres viajantes havia recipientes solidamente seguros, e até aos passageiros era dado obter fogo e luz, porque tambem levavam gaz armazenado em recipiente especial debaixo de uma pressão equivalente a muitas atmospheras. Era abrir uma torneira, e tinham gaz para lhes illuminar e aquecer o confortable vehiculo para seis dias. Claro está que não lhes faltava nada do que se póde reputar essencial á vida ou mesmo á commodidade. Alem d'isto, e graças aos instinctos de Miguel Ardan, veio ainda o agradavel juntar-se ao util, sob fórma de obras de arte; Miguel se não lhe faltára espaço, fazia do projectil um verdadeiro _atelier_ de artista. Errada seria a supposição de quem imaginasse que tres pessoas não estavam bem á larga n'aquella torre de metal. Media-lhe a capacidade interna uma superficie de proximamente cincoenta e quatro pés quadrados por dez pés de altura, espaço que já consentia aos viajeiros certa liberdade de movimentos. Nem que fossem no mais _confortable_ wagon dos Estados Unidos estariam tanto á sua vontade. Estando resolvida a questão de mantimentos e illuminação, faltava ainda a questão do ar. Era evidente que o ar contido no projectil não podia chegar para a respiração dos tres viajantes pelo espaço de quatro dias; effectivamente, cada homem gasta n'uma hora todo o oxygenio contido em cem litros de ar. Barbicane, os dois companheiros e dois cães que tencionavam levar, haviam de consumir só em vinte e quatro horas, dois mil e quatrocentos litros de oxygenio, em peso proximamente sete libras. Forçoso era portanto renovar o ar do interior do projectil. Mas como? Por um processo muito simples, o dos srs. Reiset e Regnault, o mesmo a que Miguel alludíra no correr da discussão do meeting. É vulgarmente sabido que o ar se compõe essencialmente de vinte e uma partes de oxygenio e setenta e nove de azoto. E o que é que succede no acto da respiração? Um phenomeno muito simples. O homem absorve o oxygenio do ar, gaz eminentemente proprio para sustentar a vida e expelle o azoto intacto. O ar expirado perdeu perto de cinco por cento do seu oxygenio e contém um volume proximamente igual de acido carbonico, que é o producto definitivo da combustão dos elementos do sangue pelo oxygenio inspirado. Portanto, em qualquer logar fechado, ha de succeder sempre, depois de certo tempo, transformar-se todo o oxygenio do ar em acido carbonico, gaz que é essencialmente deleterio. Como o azoto se conservava intacto, reduzia-se portanto a questão ao seguinte: 1.^o, refazer o oxygenio absorvido; 2.^o, destruir o acido carbonico expirado. E não ha nada mais facil, por meio do chlorato de potassa e da potassa caustica. O chlorato de potassa é um sal que se apresenta sob fórma de palhetas brancas; aquecido a uma temperatura superior a quatrocentos graus, transforma-se em chloreto de potassium, abandonando todo o oxygenio que contém. Dezoito libras de chlorato de potassa rendem por este processo sete libras de oxygenio, isto é, a quantidade d'elle necessaria aos viajantes para vinte e quatro horas. E aqui está como se havia de fazer o oxygenio. A potassa caustica, essa é uma substancia muito avida do acido carbonico misturado com o ar. Basta agita-la no ambiente para que elle se apodere do acido carbonico, formando bicarbonato de potassa. E aqui está tambem como havia de ser destruido o acido carbonico. Estes dois meios combinados restituem seguramente ao ar viciado todas as suas qualidades vivificadoras. Prova-o a experiencia feita com bom exito pelos dois chimicos, os srs. Reiset e Regnault. Mas, força é confessar, que as experiencias até então feitas tinham sempre sido realisadas _in anima vili_. Ignorava-se absolutamente qual seria o effeito d'ellas sobre o homem, apesar da extrema precisão scientifica com que tinham sido executadas. Esta foi a observação que a todos se offereceu na sessão em que foi ventilado tão grave assumpto. Miguel Ardan, que nem por sombras duvidava da possibilidade de viver por meio do ar, assim artificialmente preparado, offereceu-se para experimenta-lo antes da partida. Porém Maston reclamou para si proprio com energia a honra de tentar o ensaio. «Já que me não deixam partir, dizia o valente artilheiro, não será grande favor deixarem-me ao menos habitar no projectil por uns oito dias.» Recusar em tal caso, era prova de má vontade. Satisfizeram-lhe portanto os desejos. Puzeram-se á disposição de Maston quantidades de chlorato de potassa, de potassa caustica e viveres bastantes para oito dias: em seguida e depois do aperto de mão aos amigos, encaixou-se o estimavel secretario no projectil, cuja tampa foi hermeticamente fechada, a 12 de novembro ás seis horas da manhã, recommendando expressamente que lhe não abrissem a prisão antes do dia 20 ás seis horas da tarde. O que lá dentro se passava no decurso d'aquelles oito dias, não era possivel imagina-lo, que a espessura das paredes do projectil impedia que se percebesse cá de fóra qualquer ruido interior. A 20 de novembro, ás seis horas em ponto, desaparafusou-se a chapa: os amigos de Maston sempre estavam um tanto desassocegados de espirito. Mas de prompto lhes serenou o animo uma voz alegre, que soltava formidavel hurrah. Pouco depois appareceu no vertice do cone o secretario do Gun-Club em postura de triumphador. Tinha engordado! CAPITULO XXIV O TELESCOPIO DAS MONTANHAS PENHASCOSAS A 20 de outubro do anno anterior, depois de fechada a subscripção, tinha o presidente do Gun-Club aberto um credito a favor do observatorio de Cambridge, no valor das quantias necessarias para construir um enorme instrumento optico. Devia tal apparelho, luneta ou telescopio, ser de força bastante para tornar visivel na superficie da Lua qualquer objecto de nove pés de largura maxima. Ha uma differença importante entre uma luneta e um telescopio, que é conveniente recordar aqui: a luneta compõe-se de um tubo, que tem na extremidade superior uma lente convexa, chamada objectivo, e na extremidade inferior outra lente chamada ocular, a que se applica o olho do observador. Os raios que emanam do objecto luminoso atravessam a primeira lente e vão, em virtude da refracção, formar uma imagem invertida do objecto no foco[88] d'ella. Essa imagem é que é observada por meio do ocular, que a amplifica exactamente como qualquer lupa. Claro está pois que o tubo da luneta fica fechado n'uma e n'outra extremidade pelo objectivo e pelo ocular. O tubo do telescopio, pelo contrario, é aberto na extremidade superior. Os raios luminosos que partem do objecto observado penetram livremente no tubo e vão incidir n'um espelho metallico concavo, e portanto convergente. D'ahi partem esses raios depois de reflectidos a encontrar um espelho menor que os envia para um ocular, disposto por fórma que amplifique a imagem produzida. Nas lunetas portanto desempenha papel principal a refracção, nos telescopios a reflexão. É d'ahi que vem dar-se ás primeiras o nome de refractores, e aos segundos o de reflectores. A principal difficuldade de execução de taes apparelhos de optica está na construcção dos objectivos, quer sejam lentes, quer espelhos metallicos. Entretanto na epocha em que o Gun-Club tentou a sua grande experiencia, estavam já estes instrumentos notavelmente aperfeiçoados, e davam resultados magnificos. Longe ia o tempo em que Galileu observára os astros com a sua pobre luneta, que apenas amplificava na proporção de sete para um, se tanto. Do seculo XVII até então tinham os instrumentos de optica crescido em comprimento e largura em proporções consideraveis, que permittiam explorar os espaços estellares até uma profundidade até áquella epocha ignorada. Entre os instrumentos refractores que já então funccionavam, podem citar-se a luneta do observatorio de Pulkowa, na Russia, cujo objectivo mede quinze pollegadas (38 centimetros[89]), em largura, a luneta do constructor francez Lerebours, que tinha um objectivo igual ao da anterior, e finalmente a luneta do observatorio de Cambridge, com um objectivo de dezenove pollegadas de diametro (48 centimetros). A respeito de telescopios, dois eram já conhecidos de notavel força e de gigantescas dimensões. O mais antigo, construido por Herschel tinha trinta e seis pés de comprimento e um espelho de quatro pés e meio de largura. Com este instrumento se obtinham amplificações de seis mil por um. O segundo fôra construido na Irlanda, em Kreastle no parque de Parsoastown, a expensas de lord Rosse. O comprimento do tubo d'este ultimo era de quarenta e oito pés, e a largura do espelho de seis pés (1 metro e 83 centimetros)[90]; amplificava na proporção de seis mil e quatrocentos para um, e fôra necessario construir uma immensa mole de pedra e cal para dispôr os apparelhos necessarios para a manobra do instrumento, que pesava vinte e oito mil libras. Mas, como acabâmos de ver, apesar d'estas colossaes dimensões, não podéra obter-se amplificação em proporção superior a seis mil para um, numeros redondos; ora uma amplificação na proporção de seis mil para um, apenas trás a Lua á distancia de trinta e nove milhas (16 leguas), distancia á qual os objectos que têem sessenta pés de diametro são apenas perceptiveis, a não ser que sejam extremamente alongados. [Figura: O telescopio das Montanhas penhascosas (pag. 225).] E como no caso em questão, se tratava de um projectil de nove pés de largura por quinze de comprimento, forçoso era trazer a Lua a cinco milhas (2 leguas) pelo menos, e n'esse intuito, realisar amplificações na proporção de quarenta e oito mil para um. [Figura: Interior do projectil (pag. 231).] Era este o problema proposto ao observatorio de Cambridge, a quem sómente incumbia resolver difficuldades materiaes, pois que as pecuniarias lhe não tolhiam o passo. Primeiro que tudo, teve o observatorio de optar entre telescopios e lunetas. As lunetas levam certa vantagem aos telescopios. Com igual objectivo, obtem-se por meio de uma luneta amplificações em proporção mais consideravel, porque os raios luminosos que atravessam as lentes perdem menos pela absorpção de que pela reflexão no espelho metallico do telescopio. Em compensação a espessura de que é possivel construir-se uma lente é limitada, porque sendo a lente demasiado espessa, não deixa passar os raios luminosos. Alem d'isto a construcção das enormes lentes a que nos vamos referindo é extremamente difficil e leva um tempo tão consideravel, que se mede aos annos. Conseguintemente, apesar de serem as imagens mais illuminadas nas lunetas, vantagem aliás de subido preço quando se trata de observar a Lua que apenas emitte luz reflectida, decidiu o observatorio usar de um telescopio que se podia construir com mais promptidão e que permittiria obter amplificações em proporção maior. E como os raios luminosos perdem grande parte da sua intensidade no atravessar da atmosphera, resolveu o Gun-Club que o instrumento fosse assente n'uma das mais elevadas montanhas da União, circumstancia esta que havia de diminuir a espessura das camadas aereas atravessadas pela luz lunar. Nos telescopios, como já dissemos, é a lente collocada no olho do observador, o ocular, que produz a amplificação, e o objectivo que maiores amplificações consente, é o que tem mais extenso diametro e maior distancia focal. Para conseguir amplificações na proporção de quarenta e oito mil para um, forçoso era ir nas dimensões muito alem das objectivas de Herschell e de lord Rosse. E exactamente ahi é que estava a difficuldade, porque a fundição dos espelhos de tal grandeza é operação estremamente delicada. Por fortuna, inventára poucos annos antes, um homem de sciencia do instituto de França, Léon Foucault, um processo que tornára muito facil e muito rapida a operação de polir os objectivos telescopicos, substituindo os espelhos metallicos por espelhos prateados. Por este processo basta fundir um pedaço de vidro do tamanho requerido, metallisar-lhe depois a superficie por meio de um sal de prata, e está construido e polido o espelho. Foi este o processo, de resultados aliás excellentes, que se empregou na fabricação do objectivo. Acrescente-se a isto, que o espelho objectivo foi collocado em harmonia com o methodo que Herschell imaginára para os seus telescopios. No grande apparelho do astronomo de Slough vinha a imagem dos objectos reflectida pelo espelho inclinado formar-se no fundo do tubo, na outra extremidade d'elle onde estava collocado o ocular. Por esta disposição o observador, em vez de estar collocado na parte inferior do tubo, içava-se a parte superior d'elle, e d'ali, munido da respectiva lupa, é que mergulhava a vista dentro do enorme cylindro. Esta combinação tinha a vantagem de supprimir o espelho pequeno cuja funcção é reenviar a imagem para o ocular. A imagem passava assim por uma reflexão unica em vez de duas. Por consequencia, menor era a quantidade de raios luminosos extincta, e menos enfraquecida ficava a imagem, obtendo-se portanto maior clareza, vantagem preciosa especialmente na observação que havia a fazer[91]. Tomadas estas resoluções, começaram os trabalhos. Segundo os calculos do pessoal do observatorio de Cambridge, o tubo do novo reflector devia ter duzentos e oitenta pés de comprido, e o espelho dezeseis pés de diametro. Por mais colossal que fosse tal instrumento, nem sequer era digno de comparar-se com um telescopio de dez mil pés (3 kilometros e meio) de comprimento, cuja construcção o astronomo Hooke propunha ha poucos annos. E no entretanto as difficuldades que apresentava a construcção e assentamento, tal como era, já não eram pequenas. A questão da collocação, essa foi de prompto resolvida. Tratava-se de escolher uma elevada montanha, e as montanhas de grande elevação não abundam nos Estados Unidos. Effectivamente, o systema orographico d'aquelle grande paiz reduz-se apenas a duas cadeias de montanhas de mediana altura, entre as quaes corre o magnifico rio Mississipi que os americanos appellidariam «o rei dos rios» se para elles não fôra inadmissivel uma realeza qualquer. A leste, estão os Apalaches, cujo vertice mais elevado, no New-Hampshire, não vae alem de cinco mil e seiscentos pés, altura na realidade extremamente modesta. A oeste, pelo contrario, encontram-se as Montanhas penhascosas, immensa corda que começa no estreito de Magalhães, acompanha a costa occidental do sul com o nome de Andes ou Cordilheiras, transpõe o isthmo de Panamá e corre através da America do Norte até ás praias do mar polar. Não são muito elevadas estas montanhas; os Alpes ou o Hymalaya podiam com justa rasão olha-las de alto da propria grandeza com supremo desdem. Com effeito, o mais alto vertice d'ellas tem apenas dez mil e setecentos pés de altura, ao passo que o monte Branco mede quatorze mil quatrocentos e trinta e nove, e o Kintschindjinga[92], vinte e seis mil setecentos e setenta e seis, acima do nivel do mar. O Gun-Club, porém, visto ter empenho em que o telescopio assim como a Columbiada fossem assentes nos Estados da União, teve de se contentar com as montanhas Penhascosas, e mandou dirigir todo o material necessario para a cumiada de Long's Peak, no territorio do Missouri. Nem a penna nem a palavra humana poderiam narrar as difficuldades de todos os generos que os engenheiros americanos tiveram de vencer, os prodigios de audacia e de habilidade que realisaram. Este trabalho foi um verdadeiro _tour de force_. Foi necessario levantar pedras monstruosas, pesadissimas peças forjadas, pilastras de ingente peso, os pedaços enormes do cylindro, o objectivo, que só por si pesava trinta mil libras, e levantar tudo acima do limite das neves perpetuas, a mais de dez mil pés de altura, e isto depois de ter transposto planicies desertas, florestas impenetraveis, temerosos «saltos» em torrentes impetuosas, longe dos centros de população, em meio de regiões selvagens em que cada um dos pormenores da existencia se transformava em problema quasi insoluvel. Apesar de tantos obstaculos o engenho dos americanos de tudo soube triumphar. Menos de um anno depois do começo dos trabalhos, pelos ultimos dias de setembro, o gigantesco reflector erguia nos ares o seu tubo de duzentos e vinte e quatro pés de comprido suspenso de um enorme andaime de ferro, manobrando com facilidade por meio de engenhosos machinismos em direcção a todos os pontos do céu, e podendo seguir os astros de um a outro extremo do horisonte no decurso da sua marcha através do espaço. Custára este telescopio mais de quatrocentos mil dollars. A primeira vez que o dirigiram para a Lua, experimentaram os observadores uma sensação mixta de curiosidade e inquietação. Que iriam descobrir no campo d'aquelle telescopio que amplificava na proporção de quarenta e oito mil para um as dimensões dos objectos observados? Populações, rebanhos de animaes lunares, cidades, lagos, oceanos? Não, nada que á sciencia não fôra já conhecido: a natureza vulcanica da Lua verificou-se com absoluta precisão em todos os pontos do disco. Entretanto o telescopio das montanhas Penhascosas, antes de servir ao Gun-Club, prestou immensos serviços á astronomia. Graças ao poder de penetração de tal instrumento, sondaram-se até aos ultimos limites as profundezas do céu, poderam medir-se com rigor os diametros apparentes de muitas estrellas, e até M. Clarke, membro do pessoal technico de Cambridge, decompoz a _crab nebula_[93] de Taurus, que o reflector de lord Rosse não lográra reduzir. CAPITULO XXV ULTIMOS PORMENORES Contava já vinte e dois dias o mez de novembro, e a partida suprema devia realisar-se dez dias depois. Faltava ainda conseguir feliz exito n'uma unica operação, mas delicada, perigosa, que demandava infinitas precauções, e contra o bom resultado da qual ajustára o capitão Nicholl a sua terceira aposta. Era o caso, carregar a Columbiada introduzindo-lhe as quatrocentas mil libras de algodão-polvora. Pensára Nicholl, e com justo fundamento talvez, que da manipulação de tão formidavel quantidade de pyroxylo haviam de provir graves catastrophes, e que, quando peior não succedesse, aquella massa eminentemente explosiva havia de inflammar-se por si mesma sob a pressão do projectil. Havia n'isto serios perigos, que maiores se tornavam pela negligencia e leviandade habitual dos americanos. Haja vista o que succedeu durante a guerra federal: ninguem se incommodava a tirar o charuto da bôca para carregar uma bomba. Mas lá estava Barbicane, que tinha a peito chegar a bom resultado e não naufragar já dentro do porto; que escolheu por consequencia os melhores operarios, e que os fez trabalhar debaixo das suas proprias vistas, não os largando de olho um só momento, conseguindo assim á força de prudencia e de precaução, pôr a seu favor todas as probabilidades de bom exito. Antes de tudo, teve Barbicane o maior cuidado em não mandar a carga inteira de uma vez para o recinto de Stone's-Hill, senão a pouco e pouco e em caixotes perfeitamente fechados. As quatrocentas mil libras de pyroxylo foram depositadas em pacotes de quinhentas libras, dando assim para oitocentos grandes cartuchos fabricados com o maior esmero pelos mais habeis pyrotechnicos de Pensacola. Cada caixão tinha capacidade para dez cartuchos, e os caixões íam chegando uns após outros pela via ferrea de Tampa-Town; por esta fórma nunca havia a um tempo mais de cinco mil libras de pyroxylo dentro do recinto. Caixão que chegava era logo descarregado por operarios descalços, e cada cartucho transportado para o orificio da Columbiada para dentro da qual descia por meio de guindastes manobrados a braço. Tinham-se posto de parte todas as machinas que trabalhavam a vapor, e apagado todos os fogos n'um circuito de duas milhas de raio. Já era mais que bastante ter que preservar dos ardores do sol, mesmo em novembro, aquellas massas de algodão-polvora. O trabalho, por este motivo, era de preferencia feito de noite ao clarão de uma luz produzida no vacuo por meio dos apparelhos de Ruhmkorff, que ministrava uma illuminação artificial que chegava ao fundo da Columbiada. Dentro do canhão ficavam os cartuchos arrumados com perfeita regularidade e ligados uns aos outros por meio de um fio metallico destinado a conduzir instantaneamente ao centro de cada um d'elles a faisca electrica. E effectivamente por meio da pilha, é que se havia de dar fogo aquella massa de algodão-polvora. Os fios metallicos todos envolvidos em capas de substancia isoladora, iam reunir-se em um só n'um estreito orificio aberto na altura em que o projectil havia de ficar; n'esse ponto atravessavam a espessa parede de ferro fundido, subindo depois até ao solo por um dos respiradouros do revestimento de pedra, especialmente reservado para este fim. A partir do vertice de Stone's-Hill corria o fio por sobre postes pelo espaço de duas milhas, terminando n'uma pilha de Bunsen munida do competente apparelho de interrupção. Por consequencia logoque que se carregasse no botão do apparelho a corrente electrica restabelecia-se instantaneamente e ía dar fogo ás quatrocentas mil libras de algodão-polvora. Claro está que a pilha só tinha de funccionar no ultimo momento. A 28 de novembro, já os oitocentos cartuchos estavam arrumados no fundo da Columbiada. Lográra bom exito esta parte da operação. Mas quantos incommodos, quantas inquietações, quantas luctas tinha soffrido ou sustentado o presidente Barbicane? Debalde prohibíra a todos a entrada de Stone's-Hill; todos os dias um ou outro curioso subia por escalada as palissadas, e alguns houve que, levando a imprudencia até á loucura, foram pôr-se a fumar mesmo no meio dos fardos de algodão-polvora. Barbicane tinha ataques de furor todos os dias. J.-T. Maston fazia quanto em si cabia para o auxiliar, dando caça aos intrusos com grande vigor, e apanhando as pontas de charuto ainda a arder que os yankees deitavam para toda a parte. E a tarefa era de estafar, que mais de 300:000 pessoas faziam cêrco em volta das palissadas. Verdade é que Miguel Ardan tambem se offerecêra para escoltar os caixões até á bôca da Columbiada; mas o presidente do Gun-Club, que o apanhou em propria pessoa com um enorme charuto na bôca, ao tempo que ia perseguindo alguns imprudentes a quem dava assim tão funesto exemplo, logo percebeu que não podia contar com tão intrepido fumista, e viu-se obrigado a faze-lo vigiar a elle, e com muita especialidade. Emfim, como é certo que ha um Deus especial para os artilheiros, não houve a menor explosão, e conseguiu-se a final pôr a carga inteira a são e salvo. Muito duvidosa estava portanto a terceira aposta do capitão Nicholl. Faltava só introduzir o projectil na Columbiada e collocá-lo em cima da espessa camada de algodão-polvora. Antes porém de se dar começo a esta ultima operação, foram collocados e arrumados no wagon-projectil todos os objectos necessarios aos viajantes, que eram bastante numerosos e que, se tivessem deixado fazer a Miguel Ardan a sua vontade, dentro em pouco teriam enchido todo o espaço reservado para as pessoas. Ninguem imagina que cousas o amavel francez queria levar para a Lua. Uma verdadeira carregação de inutilidades. Interveio porém Barbicane, e não houve mais remedio de que reduzir-se ao estrictamente necessario. Na caixa dos instrumentos ía grande numero de barometros, thermometros e de oculos de alcance. Os viajantes estavam com curiosidade de examinar a Lua no decurso da viagem, e levavam, para facilitar o reconhecimento d'aquelle novo mundo, um excellente mappa de Beer e Moedler, o _Mappa selenographico_, publicado em quatro folhas, e que, com justo fundamento, tem fama de verdadeira obra prima de observação e paciencia. Reproduz este mappa com escrupulosa exactidão os mais insignificantes pormenores da face do astro que olha para a Terra; montanhas, valles, circos, crateras, picos, ranhuras, tudo ali se encontra com exactidão nas dimensões e fidelidade na orientação e denominações, desde os montes Doerfel e Leibnitz, cujas altas cumiadas se erguem no extremo oriental do disco até ao _Mare Frigoris_, que se estende pelas regiões circumpolares do norte. Era portanto este mappa, para os viajantes, um guia precioso, porque lhes tornava possivel o estudo do paiz, antes de lá porem os pés. Levavam tambem os viajantes tres _riffles_ e tres carabinas de caça do systema de bala explosiva, e alem d'isto grande quantidade de chumbo e polvora. Dizia a este respeito Miguel Ardan: «Nós não sabemos com quem vamos lá haver-nos; sejam homens ou sejam animaes podem levar a mal que lhes vamos fazer uma visita! Por consequencia convem que cada qual tome as suas precauções». Acrescentaremos, que as armas de defeza pessoal iam acompanhadas de picaretas, alviões, serras de mão e a mais ferramenta indispensavel, sem fallar dos vestuarios adequados para todas as temperaturas, desde o frio das regiões polares até aos calores da zona torrida. Miguel Ardan desejava levar na expedição certo numero de animaes, que se não chegava a ser um casal de cada uma das especies conhecidas, é porque Ardan não reputava cousa necessaria acclimar na Lua nem serpentes, nem tigres, nem crocodilos, nem quaesquer outros animalejos damninhos. «Tanto não, dizia elle a Barbicane, mas alguns animaes de carga, por exemplo bois, vaccas, burros ou cavallos, não só haviam de fazer bello effeito na paizagem, como nos haviam de servir de grande utilidade. «Estou de accordo, meu caro Ardan, respondia o presidente do Gun-Club, mas o nosso wagon-projectil é que não é nenhuma arca de Nóe. Nem tem capacidade que chegue, nem para isso foi destinado; por consequencia fiquemo-nos nos limites do possivel.» Finalmente, depois de longa discussão, concordou-se em que os viajantes tinham de se contentar em levar uma excellente cadella de caça que pertencia a Nicholl, e um vigoroso Terra-Nova de força prodigiosa. Entraram tambem no numero dos objectos uteis muitas caixas de sementes das mais usuaes. Miguel Ardan, por sua vontade levaria tambem alguns sacos de terra para as semear. Em todo o caso, sempre foi mettendo a um canto do projectil uma duzia de arbustos embrulhados em bainhas de palha. Restava ainda a questão de viveres, porque necessario era ir prevenido para o caso de arribar a alguma região da Lua completamente esteril. Barbicane tanto fez, que conseguiu metter no projectil provisões para um anno. É necessario acrescentar, para que ninguem d'isto se admire, que estes viveres consistiam em conservas de carnes e legumes, reduzidas ao minimo volume pela acção da prensa hydraulica, que todavia continham grande abundancia de elementos nutritivos; a variedade é que não era grande; mas tambem n'uma expedição d'aquellas não era occasião propria para alguem se mostrar niquento. Levavam tambem os viajantes uma reserva de aguardente, que montaria a uns cincoenta gallões[94], e agua para dois mezes apenas, porque, na verdade, em consequencia das ultimas observações astronomicas, já ninguem punha em duvida a existencia de certa quantidade de agua á superficie da Lua. Quanto a viveres, reputar-se-ía até insensato quem suppozesse que habitantes da Terra não haviam de lá encontrar farto alimento. Miguel Ardan não conservava sombra de duvida a tal respeito. Se a conservára por certo não estaria decidido a partir. «E demais, disse elle um dia aos amigos, os camaradas cá da Terra de certo nos não hão de abandonar completamente, antes terão todo o cuidado em nos não esquecer. [Figura: Desde pela manhã uma multidão... (pag. 236).] --Certamente, respondeu J.-T. Maston. --Como se entende isso? perguntou Nicholl. [Figura: Fogo! (pag. 241).] --Muito simplesmente, respondeu Ardan. Porventura não continua a Columbiada a estar no mesmo logar? Pois então! não poderão mandar-nos obuzes carregados de viveres que nós esperaremos em dias prefixos, por exemplo, todas as vezes que a Lua se apresentar em condições favoraves de zenith, senão de perigeo, isto é, quasi uma vez por anno? --Hurrah! hurrah! clamou J.-T. Maston como quem lá tinha a sua idéa; isso é que é bem dito! De certo, estimaveis amigos, de certo que vos não havemos de esquecer! --Conto com isso! «E assim teremos, como acabaes de ver, e com toda a regularidade novidades do globo, e pela nossa parte tambem, só se formos muito pouco habilidosos é que não havemos de conseguir pôr-nos em communicação com os nossos bons amigos da Terra!» Respirava n'estas palavras tão grande confiança, que Miguel Ardan com o seu ar resoluto e soberbo denodo teria levado atrás de si o Gun-Club inteiro. Tudo quanto Ardan dizia parecia simples, elementar, facil, de bom exito seguro; era preciso que alguem estivesse na realidade agarrado com muito apoucamento a este miseravel globo terraqueo, para que ouvindo-o se não promptificasse a ser companheiro dos tres viajantes na sua expedição lunar. Logoque ficaram collocados e arrumados no projectil os diversos objectos, introduziu-se entre os respectivos tabiques a agua destinada a amortecer a repercussão, e no recipiente proprio o gaz de illuminação. De chlorato de potassa e de potassa caustica mettêra Barbicane, que se arreceiava das demoras imprevistas no caminho, no projectil, quantidade tal d'estas substancias que chegava para renovar o oxygenio e absorver o acido carbonico por espaço de dois mezes. A restituição ao ar das suas qualidades vivificadoras e a purificação completa d'elle, estavam a cargo de um apparelho extremamente engenhoso, que funccionava automaticamente. Conseguintemente estava prompto o projectil, e nada mais restava a fazer senão po-lo no fundo da Columbiada, operação aliás cheia de difficuldades e de perigos. Conduziram o enorme obuz ao cume de Stone's-Hill, onde ficou seguro e suspenso de possantes guindastes por cima do poço de metal. Aquelle momento foi palpitante! Se succedesse quebrarem-se as cadeias com o enorme peso, a quéda de similhante massa seguramente teria produzido instantanea inflammação do algodão polvora. Felizmente não succedeu assim, e algumas horas depois, o wagon-projectil que descêra lentamente pela alma do canhão, descansava em cima da sua cama de pyroxylo, verdadeiro _édredon_ fulminante. O unico resultado que veio da pressão do projectil foi ficar mais atacada a carga da Columbiada. «Perdi», disse o capitão, entregando ao presidente Barbicane a quantia de tres mil dollars. Barbicane não queria receber dinheiro de um companheiro de viagem; teve porém que ceder perante a obstinação de Nicholl, que tinha empenho em satisfazer quantos compromissos contrahíra, antes de deixar a Terra. «Á vista d'isso, disse Miguel Ardan, só uma cousa tenho a desejar-vos, meu estimavel capitão. --Qual? perguntou Nicholl. --Que vos dêem igual proveito as outras duas apostas. Se assim succeder, estaremos seguros de não nos ficarmos no caminho. CAPITULO XXVI FOGO! Chegára o primeiro dia de dezembro, dia fatal, porque se a partida do projectil se não effeituasse n'aquella mesma noite ás dez horas quarenta e seis minutos e quarenta segundos da tarde, mais de dezoito annos haviam de decorrer antes que a Lua volvesse a apresentar-se nas mesmas condições simultaneas de zenith e perigeo. O tempo estava magnifico; apesar da proximidade do inverno, o sol resplandecia e banhava com seus radiantes effluvios aquella mesma Terra que tres dos habitantes d'ella íam abandonar em troca de um mundo novo. Quanta gente mal dormiu durante a noite que precedeu aquelle dia com tanta impaciencia desejado! Quantos peitos opprimidos pelo pesado fardo da anciedade! Todos os corações palpitaram de inquietação, excepto o coração de Miguel Ardan. Este personagem impassivel andava de cá para lá com o seu ar habitual de quem tem muitos affazeres, mas nada denunciava n'elle preoccupação insolita. Dormira a somno solto, como dormia Turenne antes da batalha, encostado ao reparo de um canhão. Desde pela manhã innumeravel multidão cobria as planicies que se estendem a perder de vista em torno de Stone's-Hill. De quarto em quarto de hora chegava pela via ferrea de Tampa-Town um comboio carregado de novos curiosos; em breve espaço assumiu aquella emigração proporções fabulosas; segundo a estatistica do _Tampa-Town Observer_, pisaram, n'aquelle dia memoravel, o solo da Florida cinco milhões de espectadores. Havia já um mez que a maior parte d'aquella multidão acampava em volta do recinto, dando começo á fundação de uma cidade que depois se chamou Ardan's-Town. A planicie estava coberta de abarracamentos, cabanas, choupanas e tendas, habitações ephemeras que davam guarida a uma população bastantemente numerosa para causar inveja ás maiores cidades da Europa. Ali tinham representantes todos os povos da Terra, fallavam-se ali a um tempo todos os dialectos do mundo. Dir-se-ía que reinava lá a confusão das linguas como nos tempos biblicos da torre de Babel. Ali se confundiam em absoluta igualdade as diversas classes da sociedade americana. Banqueiros, lavradores, maritimos, moços de recados, corretores, cultivadores de algodão, negociantes, barqueiros, magistrados, tudo ali se acotovelava com sem cerimonia primitiva. Fraternisavam os creoulos da Luiziania com os fazendeiros da Indiana; os _gentlemen_ do Kentucky e do Tenessee, os virginienses elegantes e altivos mettiam conversa com os caçadores semi-selvagens dos Lagos, e com os contratadores de gado de Cincinnati. Usavam na cabeça chapéu de castor branco de aba larga ou o classico panamá, vestiam calça de guinguamp azul, das fabricas de Opelousas, envolviam o corpo nas dobras de elegantes blusas de cotim cru, e os pés em botins de cores brilhantes, trazendo em exposição extravagantes bofes de fina cambraia, e fazendo scintillar nos peitos das camisas, nos punhos, nas gravatas, nos dez dedos, e até nas orelhas, um sortimento completo de anneis, cadeias, argolas e _breloques_, cujo mau gosto corria parelhas com o subido preço. Outras tantas mulheres, creanças e creados, em trajes não menos opulentos acompanhavam, seguiam, precediam ou rodeiavam aquelles maridos, paes ou amos, que mais pareciam chefes de tribu cercados das innumeraveis familias. Era cousa digna de ver-se aquella gente toda ás horas de refeição deitar-se ás iguarias peculiares dos Estados Unidos e devorar, com appetite ameaçador para o abastecimento de viveres da Florida, alimentos que causariam repugnância a qualquer estomago europeu, taes como rãs de fricassé, macacos estufados, fish-chowder[95], sariguêa assada, opossum ainda em sangue, ou racoon na grelha. Mas em compensação tambem, que variada serie de licores e de bebidas para facilitar a digestão d'aquelles indigestos alimentos! Que gritos excitantes, que vociferações convidativas echoavam nos _bar-rooms_ ou nas casas de pasto profusamente adornadas de copos, cangirões, frascos, garrafas brancas e pretas de fórmas inverosimeis, de almofarizes para pisar o assucar, e de mólhos de palha! «Aqui ha o julepe de hortelã!» gritava o dono de um estabelecimento em tom retumbante. --Prompta! a _sangaree_ de vinho de Bordéus! replicava outro em voz de pipia. --E o _gin-sling_, repetia o segundo. --E o _cocktail_! e _brandy-smash_! gritava o primeiro. --«Quem quer provar do verdadeiro _mint-julep_, á ultima moda?» gritavam alguns destros vendedores, fazendo passar com rapidez de um para outro copo, como qualquer prestidigitador faria a uma noz muscada, o assucar, o limão, a hortelã verde, o gêlo partido, a agua, o cognac e o ananás de que se compõe aquelle refresco. Habitualmente, repetiam-se e cruzavam-se no ar, produzindo infernal barulho, aquelles incitamentos dirigidos ás guellas seccas pela acção abrasadora das especiarias. Mas n'aquelle dia, no primeiro de dezembro, eram raros os gritos. Tambem bem poderiam os vendedores enrouquecer a provocar os freguezes, que todos os seus esforços seriam baldados. Ninguem pensava em comer nem beber; quantos espectadores circulavam por entre a multidão, que ás quatro horas da tarde ainda nem tinham comido o seu _lunch_ do costume! Symptoma ainda mais significativo, a paixão violenta dos americanos pelo jogo fôra vencida pela emoção. Quem visse os paulitos do _tempins_ deitados no chão, os dados do _creps_ a dormir nos copos, a _roleta_ immovel, o _cribbage_ abandonado, as cartas do _whist_, do vinte e um, do _rouge et noire_, do _monte_ e do _faro_ socegadamente fechadas em seus envolucros intactos, logo comprehendia que o acontecimento do dia absorvêra qualquer outra necessidade, e não deixára logar para distracções. Até á noite correu pela multidão anhelante uma agitação surda, sem clamores, como a que precede as grandes catastrophes. Dominava os espiritos uma ancia indescriptivel, um torpor pesado, um sentimento indefinivel que opprimia o coração. O que todos desejavam era que «já estivesse tudo acabado». Entretanto, por volta das sete horas, dissipou-se repentinamente aquelle pesado silencio. Nascia então a Lua no horisonte, e muitos milhões de _hurrahs_ lhe saudaram a apparição. Era exacta ao _rendez-vous_. Subiram os clamores até aos céus, rebentaram applausos de todos os lados, e a loura Phoebéa brilhava serena no céu admiravel acariciando com os mais affectuosos de seus raios a multidão innebriada. N'aquelle momento appareceram os tres intrepidos viajantes. Ao vê-los, redobraram em intensidade os clamores. Unanimemente, instantaneamente, soltou-se de todos aquelles peitos anhelantes a canção nacional dos Estados Unidos, e o _Yankee doodle_, repetido em côro por cinco milhões de cantores, ergueu-se como uma tempestade sonora até ao extremo limite da atmosphera. Depois, passado aquelle primeiro e irresistivel arranco de enthusiasmo, emmudeceu o hymno, extinguiram-se pouco e pouco as derradeiras harmonias, os echos perderam-se no espaço, e vagueou por sobre a multidão tão fundamente impressionada um rumorejar silencioso. No entretanto, o francez e os dois companheiros tinham transposto o recinto reservado em torno do qual se apertava a multidão immensa. Acompanhavam-nos os socios do Gun-Club e as deputações enviadas pelos differentes observatorios europeus. Barbicane ia frio e sereno e dava tranquillamente as ultimas ordens. Nicholl, de beiços apertados e mãos encruzadas atrás das costas, caminhava com passo firme e pausado. Miguel Ardan, sempre despreoccupado, em traje de perfeito viajante, polainas de coiro nos pés, bolsa de viagem a tiracolo, mochilla ás costas, a nadar dentro do amplo fato de velludo castanho, de charuto na bôca, distribuia na passagem cordeaes apertos de mão com prodigalidade de principe. Prosa e alegria nunca lhe faltavam; ria, chalaceava e fazia ao digno J.-T. Maston partidas de garoto, n'uma palavra mostrava-se «francez», e, o que peior é, «parisiense» até ao ultimo segundo. Soaram dez horas. Era chegado o momento de tomar logar dentro do projectil, porque a manobra necessaria para descer, o aparafusar da chapa-tampa, e a safa dos guindastes e andaimes que pendiam dentro das fauces da Columbiada, sempre haviam de levar ainda algum tempo. Barbicane regulára o seu chronometro, com erro inferior a um decimo de segundo, pelo do engenheiro Murchison, encarregado de dar fogo á polvora, por meio da faísca electrica; d'esta maneira os viajantes podiam, encerrados dentro do projectil, seguir com os olhos o ponteiro impassivel que havia de marcar o instante exacto da partida. Chegára o momento das despedidas. Foi uma scena tocante. Miguel Ardan, apesar de toda a sua febril alegria, sentiu-se commovido. J.-T. Maston lográra encontrar sob as aridas palpebras uma velha lagrima que estava como de reserva para aquella occasião, e que o bom do secretario verteu na fronte do seu caro e estimavel presidente. «E se eu tambem fosse? disse elle, ainda estâmos a tempo! --É impossível, meu velho Maston», respondeu Barbicane. Poucos instantes depois, estavam os três companheiros de viagem installados no projectil, cuja chapa-porta tinham aparafusado pela parte de dentro, e abria-se livremente para o céu, inteiramente desembaraçada a bôca da Columbiada. Nicholl, Barbicane e Miguel Ardan estavam definitivamente entaipados no wagon de metal. Quem poderia pintar a anciedade universal, que então attingíra ao seu paroxysmo? A Lua ía caminhando n'um firmamento de limpida pureza, e apagando na passagem os lumes scintillantes das estrellas; percorriam aquelle momento a constellação dos Gemeos e estava a igual distancia do horisonte e do zenith. Para todos era facil de comprehender que a pontaria era feita adiante do alvo, como a faz o caçador que aponta adiante da lebre que quer ferir. Pesava por sobre aquella scena toda um silencio atterrador. Nem um sopro de vento na terra! Nem um suspiro de tanto peito. Nem os corações ousavam palpitar. Os olhos fixavam-se todos como que assustados nas fauces abertas da Columbiada. Murchison seguia com os olhos o ponteiro do chronometro. Faltavam apenas quarenta segundos para soar o instante da partida. Cada segundo parecia um seculo. Ao bater do vigesimo segundo tudo estremeceu; é que accudíra ao pensamento d'aquella multidão que tambem os audaciosos viajantes encerrados no projectil contavam aquelles segundos terriveis! Soltaram-se então gritos isolados que diziam: «Trinta e cinco! trinta e seis! trinta e sete! trinta e oito! trinta e nove! quarenta! Fogo!!!» No mesmo instante, Murchison, carregando com o dedo no interruptor do apparelho, restabeleceu a corrente electrica e lançou a faísca para o fundo da Columbiada. Instantaneamente produziu-se uma detonação horrorosa, inaudita, sobrehumana, de que cousa alguma poderia dar idéa, nem o ribombar do trovão, nem o estampido das erupções. Das entranhas do solo, como de uma cratera, surgiu um jacto immenso de fogo. A terra tremeu e abriu-se, e apenas um ou outro espectador pôde por instantes entrever o projectil que fendia victoriosamente os ares envolto em chammejantes vapores. CAPITULO XXVII CÉU ENCOBERTO No momento em que se ergueu para os céus, até prodigiosa altura, o jacto incandescente, a effusão de labaredas illuminou a Florida inteira; por inapreciaveis instantes, tornou-se a noite em claro dia n'uma extensão consideravel de territorio. Aquelle immenso penacho de fogo viu-se a cem milhas de distancia no mar, tanto no Atlantico como no golpho, e mais de um capitão de navio notou no diario de bordo a apparição d'aquelle gigantesco meteoro. A detonação da Columbiada foi acompanhada de um verdadeiro tremor de terra. A Florida sentiu-se abalada até ás entranhas. Os gazes da polvora, dilatados pelo calor, repelliram com violencia incomparavel as camadas atmosphericas, e aquelle furacão artificial, cem vezes mais rapido que o furacão das tempestades, passou como um cyclone através dos ares. Nem um só espectador ficou de pé; homens, mulheres, creanças, todos foram deitados ao chão, como espigas pela borrasca; houve um inexprimivel tumulto, e grande numero de pessoas que ficaram gravemente feridas. J.-T. Maston, que de encontro a todos os dictames da prudencia estava perto de mais, foi arremessado a vinte toezas de distancia, e passou por sobre as cabeças dos seus concidadãos como uma bala. Trezentas mil pessoas ficaram por alguns momentos surdas, e como que tocadas de estupor. A corrente atmospherica depois de ter derrubado os abarracamentos, de ter virado de pernas ao ar cabanas, de ter desarreigado arvores, n'um raio de vinte milhas, de ter impellido os comboios do caminho de ferro até Tampa, caiu sobre a cidade como uma _avalanche_, destruindo um cento de casas, entre outras a igreja de Saint-Mary, e o novo edificio da Bolsa, que abriu fendas em toda a sua extensão. Algumas das embarcações surtas no porto, abalroando umas de encontro ás outras, foram a pique, e uns dez navios fundeados no molhe foram até á costa, partidas as amarras como fios de algodão. Mas o circulo das devastações estendeu-se muito mais ao largo, ainda alem dos limites dos Estados Unidos. O effeito da repercussão, auxiliado pelos ventos de oeste, fez-se sentir no Atlantico a mais de trezentas milhas das praias da America. Arremessou-se por sobre os navios com inaudita violencia uma tempestade artificial, uma tempestade inesperada, que nem o almirante Fitz-Roy podéra prever; muitas embarcações envolvidas n'aquelles horrorosos turbilhões, sem tempo sequer para colher panno, sossobraram a panno largo, entre outros o _Childe-Harold_, de Liverpool, catastrophe esta muito para lamentar, que deu origem a recriminações violentas por parte da Inglaterra. Finalmente, para tudo relatar, aindaque o facto não offereça maior garantia do que a affirmação de alguns indigenas, asseguram os habitantes da Goréa e de Serra Leôa ter ouvido, meia hora depois da partida do projectil, um abalo surdo, derradeiro fremito das ondas sonoras, que depois de terem atravessado o Atlantico, vinham morrer nas plagas africanas. Mas volvâmos á Florida. Passados os primeiros instantes do tumulto despertaram os surdos, os feridos, emfim a multidão inteira, e ergueram-se até aos céus clamores freneticos de: hurrah por Ardan! hurrah por Barbicane! hurrah por Nicholl! Milhões de homens de ventas para o ar, armados de telescopios, de lunetas, de oculos de alcance, interrogavam o espaço, esquecidos de contusões e emoções, para se occuparem exclusivamente do projectil. Mas debalde pesquisavam, que o projectil já não podia ver-se, e força era resignar-se a esperar pelos telegrammas de Long's-Peak. [Figura: Effeito da detonação (pag. 243).] O director do observatorio de Cambridge[96] estava no seu posto, que a elle, astronomo habil e perseverante, é que tinham sido confiados os trabalhos de observação. Porém um phenomeno imprevisto, aliás facil de prever, e contra o qual nada havia a fazer, veiu dentro em pouco submetter a dura prova a impaciencia publica. [Figura: O director estava no seu posto (pag. 245).] O tempo até ali tão bello, mudou do repente, o céu de subito toldado cobriu-se de nuvens. Nem podia deixar de assim succeder, depois da terrivel deslocação das camadas atmosphericas e da dispersão de tão enorme quantidade de vapores, producto da deflagração de quatrocentas mil libras de pyroxylo. A ordem natural fôra completamente perturbada. Nem é cousa que cause admiração, visto como, nos combates navaes, por vezes se têem observado repentinas modificações do estado atmospherico, exclusivamente causadas pelas descargas de artilheria. No dia seguinte surgiu o sol de um horisonte carregado de espessas nuvens, pesado e impenetravel véu estendido entre o céu e a terra, e que por desgraça alcançava até ás regiões das montanhas Penhascosas. Foi uma fatalidade. Ergueu-se de todos os cantos do globo um concerto de reclamações. A natureza porém pouco se commovia; decididamente já que os homens tinham perturbado a atmosphera com a detonação, justo era que lhe soffressem as consequencias. No decurso do primeiro dia todos diligenceavam penetrar o opaco véu de nuvens; baldados esforços! Deve tambem notar-se que todos se enganavam levantando os olhos para o céu, porque em consequencia do movimento diurno do globo, o projectil corria n'aquelle momento pela linha dos antipodas. Fosse como fosse, quando a Lua volveu acima do horisonte, envolvida como estava a Terra em noite impenetravel e profunda, foi impossivel distinguir o astro das noites; era caso para dizer que a Lua de proposito se furtava ás vistas dos temerarios que lhe tinham atirado. Consequentemente não havia possibilidade de observação, e os despachos de Long's-Peak não fizeram mais do que vir confirmar aquelle desagradavel contratempo. Entretanto, se é que a experiencia lográra feliz exito, os viajantes que tinham partido no 1.^o de dezembro ás dez horas quarenta e seis minutos e quarenta segundos da tarde, deviam chegar no dia 4 á meia noite, e portanto até áquella epocha, e visto como, por fim de contas, sempre havia de ser muito difficil observar em taes condições corpo tão pequeno como o obuz, todos se mostraram pacientes sem grande alarido. A 4 de dezembro, das oito horas da tarde até á meia noite devia ser possivel seguir o rasto do projectil, que devia apparecer qual ponto negro no disco brilhante da Lua. Mas o céu conservou-se encoberto sem piedade, facto que levou a exasperação publica ao paroxysmo. Chegaram até a injuriar a Lua, só porque se não mostrava. Triste compensação das cousas d'este mundo! J.-T. Maston, desesperado, partiu para Long's-Peak. Desejava observar por seus proprios olhos. Não lhe restava duvida de que os amigos deviam ter chegado ao termo da viagem. E tambem a ninguem constava que o projectil tivesse tornado a caír em qualquer ponto das ilhas ou dos continentes terrestres, e J.-T. Maston não queria admittir nem por instantes a possibilidade da quéda nos oceanos que cobrem as tres quartas partes da extensão do globo terraqueo. No dia 5, tempo, o mesmo. Os grandes telescopios do velho mundo, o de Herschell, o de Rosse, o de Foucault estavam invariavelmente apontados para o astro das noites, porque o tempo na Europa estava exactamente n'aquella occasião magnifico; mas o pouco alcance relativo de taes instrumentos, impedia qualquer observação util. No dia 6, tempo, o mesmo. Mordiam-se de impaciencia as tres quartas partes do globo. Chegaram a propor-se os meios mais insensatos para dissipar as nuvens accumuladas no ar. No dia 7, pareceu que o estado do céu se modificava um tanto. Renasceu a esperança, mas não durou por muito tempo; á noite, já as nuvens de novo acastelladas defendiam a abobada estrellada contra todas as inspecções. O caso então tornou-se serio. Effectivamente no dia 11, ás nove horas e onze minutos da manhã devia a Lua entrar no ultimo quarto. Passado esse momento havia de ir declinando, e aindaque o céu limpasse diminuiriam notavelmente as probabilidades de observação; com effeito a Lua havia de mostrar então uma parte sempre decrescente do disco, até tornar-se em Lua nova, isto é, até que nascesse e se pozesse simultaneamente com o Sol, cujos raios a tornariam absolutamente invisivel. Seria portanto necessario esperar até 3 de janeiro até ao meio dia e quarenta minutos para que voltasse a Lua cheia, e se podessem recomeçar as observações. Os jornaes publicavam estas reflexões com mil commentarios, e não occultavam ao publico, que era necessario armar-se de angelica paciencia. No dia 8, nada. No dia 9 o sol appareceu por um instante como para zombar dos americanos. Cobriram-no de vaias, e offendido, certamente com tal acolhimento, mostrou-se avaro de seus raios. No dia 10, nada de mudança. J.-T. Maston ia enlouquecendo, chegou a haver suas apprehensões em relação ao cerebro daquelle estimavel cavalheiro, tão bem conservado até então, pelo seu craneo de gutta-percha. No dia 11 porém desencadeou-se na atmosphera uma d'aquellas horrorosas tempestades privativas das regiões inter-tropicaes. Varreram fortes ventaneiras de leste as nuvens ha tanto tempo encastelladas, e á noite o disco meio corroido do astro das noites ostentou-se magestoso por entre as limpidas constellações do céu. CAPITULO XXVIII UM ASTRO NOVO N'aquella mesma noite, a palpitante nova com tanta impaciencia esperada rebentou como um raio nos Estados da União, e d'ali correndo através do oceano, percorreu todos os fios telegraphicos do globo. O projectil fôra visto, graças ao gigantesco reflector de Long's-Peak. Eis a nota redigida pelo director do observatorio de Cambridge, que contém as conclusões scientificas da grande experiencia do Gun-Club. «Long's-Peak, 12 de dezembro.--Aos ex.^{mos} srs. membros do pessoal technico do observatorio de Cambridge. «O projectil arremessado pela Columbiada de Stone's-Hill foi visto pelos srs. Belfast e J.-T. Maston, no dia 12 de dezembro, ás oito horas e quarenta e sete minutos da tarde, já a Lua entrára no ultimo quarto. «O projectil não deu no alvo, passou-lhe ao lado, mas todavia bastantemente proximo para ficar retido pela attracção lunar. «Chegado ali, transformou-se-lhe o movimento rectilineo em movimento circular de rapidez vertiginosa, e actualmente percorre uma orbita elliptica em volta da Lua, da qual se tornou verdadeiro satellite. «Os elementos do novo astro não poderam ainda determinar-se. Nem é conhecida a sua velocidade de translação, nem a de rotação. A distancia a que está da superficie da Lua, póde avaliar-se em duas mil oitocentas e trinta e tres milhas approximadamente. «N'estes termos, uma de duas hypotheses póde realisar-se, que ha de ter por consequencia modificação no actual estado de cousas. «Ou vencerá a attracção da Lua, e n'este caso chegarão os viajantes ao termo da sua viagem; «Ou o projectil mantido n'uma ordem immutavel, gravitará até final dos seculos em volta do disco lunar. «É o que nos hão de dizer um dia as observações; até agora porém, a tentativa do Gun-Club não colheu outro resultado senão enriquecer com um astro novo o nosso systema solar.--_J. T. Belfast_.» Quantos problemas surgiram d'esta inesperada solução! Que situação cheia de mysterios reservava o futuro ás investigações da sciencia! Graças á coragem e á dedicação de tres homens, aquella empreza apparentemente assás futil, de arremessar uma bala á Lua, acabava de ter um resultado immenso, e cujas consequencias eram incalculaveis. Os viajantes encerrados no novo satellite, se não tinham realisado o seu fim, faziam pelo menos parte do mundo lunar; gravitavam em torno do astro das noites, cujos mysterios o olho do homem ía pela vez primeira penetrar. Os nomes de Nicholl, Barbicane e Miguel Ardan devem portanto para todo o sempre ser celebrados nos fastos da astronomia, porque estes ousados exploradores, avidos de alargar o circulo dos conhecimentos humanos, lançaram-se audaciosamente através do espaço, e jogaram a vida na mais notavel tentativa dos tempos modernos. Como quer que fosse, logoque foi do dominio publico a nota de Long's-Peak, apossou-se do universo inteiro um sentimento de surpreza e de espanto. Acaso seria possivel prestar auxilio áquelles ousados habitantes da Terra? Não, por certo, que se tinham collocado fóra da humanidade, logo que transpozeram os limites impostos por Deus ás creaturas terrestres. Ar podiam elles obte-lo pelo espaço de dois mezes. Viveres, levavam-n'os para um anno. Mas depois?... Ao formular-se tal pergunta palpitavam até os corações mais insensiveis. Só havia um homem, um só, que não podia admittir que a situação fosse para desesperar. Um só tinha confiança, e era esse o amigo dedicado dos tristes, e tanto como elles audaz e resoluto, era o estimavel J.-T. Maston. E tambem não os largava de olho. Assentára definitivamente os penates no posto de Long's-Peak, onde tinha por unico horisonte o espelho do immenso reflector. Logoque a Lua surgia acima do horisonte, fixava-a no campo do telescopio e não a perdia de vista nem um momento, seguindo-a com assiduidade na sua marcha através dos espaços estellares; observava com eterna paciencia a passagem do projectil pelo disco de prata; na realidade podia dizer-se que o estimavel secretario estava em perpetua communicação com os tres amigos, que ainda, um dia esperava tornar a ver. «Havemos de nos corresponder com elles, dizia a quem queria ouvi-lo, logoque as circumstancias o permittam. Havemos de ter novidades de lá, e elles tambem as hão de ter de cá! E demais, eu conheço-os, são homens engenhosos. Juntos os tres, levaram comsigo para o espaço todos os recursos da arte, da sciencia e da industria. Com taes elementos faz-se tudo quanto se quer. Hão de saír-se da difficuldade, e senão veremos!» FIM DE «DA TERRA Á LUA». INDICE DOS CAPITULOS Capitulos Pag. I O Gun-Club 5 II Communicação do presidente Barbicane 16 III Effeitos da communicação Barbicane 27 IV Resposta do observatorio de Cambridge 34 V Romance da Lua 40 VI O que não é possivel ignorar, e o que já não é permittido acreditar nos Estados Unidos 49 VII Hymno da bala 55 VIII Historia do canhão 68 IX A questão da polvora 76 X Um inimigo por vinte e cinco milhões de amigos 86 XI A Florida e o Texas 95 XII _Urbi et Orbi_ 103 XIII Stone's-Hill 112 XIV O alvião e a trolha 122 XV Festa da fundição 132 XVI A Columbiada 137 XVII Um despacho telegraphico 147 XVIII O passageiro do _Atlanta_ 148 XIX Um _meeting_ 161 XX Ataque e replica 174 XXI Como um francez arranja uma pendencia de honra 186 XXII O novo cidadão dos Estados Unidos 198 XXIII O wagon-projectil 207 XXIV O telescopio das montanhas penhascosas 217 XXV Ultimos pormenores 226 XXVI Fogo! 235 XXVII Céu encoberto 242 XXVIII Um astro novo 249 */ Notas: [1] Escola militar dos Estados Unidos. [2] Papalvo. [3] Litteralmente, «club-canhão». Pelo sentido, club dos artilheiros. [4] Quinhentos kilogrammas. [5] Cada milha vale 1:609 metros e 31 centimetros. Sete milhas valem approximadamente tres leguas kilometricas. [6] O jornal abolicionista mais enthusiasta dos Estados Unidos. [7] Navalha de folha larga. [8] Governo de si proprio. [9] Administradores da cidade eleitos pelo povo, vereadores. [10] Cadeiras de balouço, muito usadas nos Estados Unidos. [11] De [Grego: selênê] (seléne), palavra grega, que significa Lua. [12] A jarda vale approximadamente 91 centimetros. [13] Este folheto foi publicado em França pelo republicano Laviron, morto no assedio de Roma em 1849. [14] Habitantes da Lua. [15] Approximadamente 11:000 metros. [16] Mistura de rhum, sumo de laranja, assucar, canella e noz moscada. É uma bebida de côr amarellada. [17] Bebida horrorosa do povo mais baixo; em inglez litteralmente: _thoroug knoch me down_. [18] Cognome da Nova Orleans. [19] Cem mil leguas. É a velocidade da electricidade. [20] _Guarda-vida_ (life-preserver). Arma de algibeira, formada de um feixe de barbas de baleia, ligadas n'uma das extremidades por uma bola de metal. [21] _Muita bulha para nada_, comedia de Shakspeare. [22] _Como vos aprouver_, outra comedia de Shakspeare. [23] Está no texto a palavra _expedient_, que é absolutamente intraduzivel em portuguez. [24] O zenith é o ponto da abobada celeste, situado na vertical que passa pelo observador. [25] A nebulosa é, como se deprehende do texto, um aggregado de alguns milhões de soes ou estrellas que estão entre si a grandissimas distancias. Estes aggregados, por virtude da enorme distancia de cada uma das suas partes á terra, apparecem-nos á vista simples, como se fossem corpos continuos, nuvens, d'ahi lhes vem a denominação. Exemplo notavel de nebulosa é a _via lactea_ ou estrada de S. Thiago, da qual o nosso sol é estrella componente. (_Nota do traductor._) [26] Da palavra grega [Grego:galachtos], que significa leite. É conhecida vulgarmente pelo nome de estrada de S. Thiago. [27] O diametro de Sirius é, segundo Wolaston, doze vezes maior que o do Sol, isto é, igual a 4.300:000 leguas. [28] Alguns d'estes astros são tão pequenos, que se poderia fazer n'um dia a passo gymnastico uma volta completa em volta d'elles. [29] Vinte e nove dias e meio approximadamente é o que dura uma revolução lunar. [30] Oitocentas e sessenta e nove leguas, um pouco mais da quarta parte do raio da terra. [31] Trinta e oito milhões de kilometros quadrados. [32] Esta é a duração da revolução sideral, isto é, intervallo de tempo que ha entre duas passagens consecutivas da Lua pela mesma estrella. [33] Isto é de calibre vinte e quatro, que pesa vinte e quatro libras. [34] É por esta rasão que depois de termos ouvido a detonação da peça já não podemos ser feridos pela bala. [35] Columbiadas chamaram os americanos áquellas enormes machinas de destruição. [36] Duzentos e setenta mil réis ao cambio medio de cento e oitenta réis por franco. (_Nota do traductor._) [37] Trinta centimetros: a pollegada americana vale 25 millimetros. [38] Isto é, 4 metros e 90 centimetros. Á distancia a que está a Lua o descenso seria sómente de 1 millimetro e 1/3 ou 590 millesimos da linha. [39] Intersticio que existe ás vezes entre a bala e a alma da peça, e que provém de não serem exactamente iguaes os diametros. [40] Centesimos do dollar, 36 réis approximadamente. [41] A libra americana vale 453 grammas. [42] Pouco menos de oitocentos metros cubicos. [43] Dois mil metros cubicos. [44] N'esta discussão reivindica o presidente Barbicane para um compatriota seu a invenção do collodion. Em que pese ao estimavel Maston, diremos que ha aqui erro, que vem da similhança de nomes. Em 1847, Maynard, estudante de medicina em Boston, teve, é verdade, a idéa de applicar o collodion ao tratamento das chagas; mas o collodion já era conhecido desde 1846. É a um francez, espirito distincto, homem de sciencia, a um tempo pintor, poeta, philosopho, hellenista e chimico, Luiz Ménard, que cabe a honra d'esta grande descoberta. [45] Navios de guerra americanos. [46] O peso de polvora empregado era apenas um duodecimo do peso do obuz. [47] Oitenta e um mil e trezentos francos ou quatorze contos seiscentos e trinta e quatro mil réis, a cento e oitenta réis o franco. [48] A declinação de um astro é a sua distancia ao equador celeste medida no seu meridiano. A ascensão recta é o arco do equador comprehendido entre o meridiano do astro e o ponto vernal. [49] Quatorze mil setecentos e sessenta contos de réis ao cambio de novecentos e dezoito réis o dollar. [50] Tres mil seiscentos setenta e dois contos de réis. [51] Duzentos sessenta e cinco contos e quinhentos mil réis. [52] Duzentos e vinte e cinco contos setecentos e sete mil e quatrocentos réis. [53] Noventa e tres contos e seiscentos mil réis. [54] Cincoenta e dois contos novecentos e setenta e oito mil cento e quarenta réis. [55] Cento e sessenta e oito contos setecentos e cincoenta mil réis. [56] Sessenta e dois contos trezentos e oito mil e oitocentos réis. [57] Noventa e dois contos trezentos e quarenta mil réis. [58] Vinte e tres réis e quatro decimos. [59] Quarenta e dois contos trezentos e setenta e dois mil réis. [60] Vinte e um contos cento e trinta e quatro mil quinhentos e vinte réis. [61] Doze contos novecentos e sessenta mil réis. [62] Trinta e seis contos de réis. [63] Seis contos oitocentos e quarenta e dois mil oitocentos e oitenta réis. [64] Trezentos e dez mil oitocentos e sessenta réis. [65] Quarenta e seis mil duzentos e sessenta réis. [66] Cinco mil cento e setenta réis. [67] Duzentos e noventa e dois contos seiscentos e oitenta mil réis. [68] Cinco mil trezentos e treze contos setecentos e setenta e sete mil e doze réis. [69] Noventa e sete mil quinhentos e sessenta réis. [70] Proximamente duzentas leguas. [71] 84^o do thermometro Fahrenheit, que equivalem a 28 do thermometro centigrado. [72] Riacho. [73] 15 365:440 hectares. [74] Gastaram-se nove annos para abrir o poço de Grenelle, que tem quinhentos e quarenta e sete metros de altura. [75] Seiscentos quarenta e dois contos, quarenta e dois mil trezentos e sessenta réis. [76] Em termo vulgar, vedor. (_Nota do traductor_.) [77] Collina das pedras. [78] A contar do meridiano de Washington. A differença para o meridiano de Lisboa é de 67^o 56' 31",35. Esta longitude é portanto, em relação ao meridiano de Lisboa 73^o 3' 31",35 O. (_Nota do traductor_.) [79] Tin, especie de cavalete. [80] 40 graus centigrados. [81] Tres mil e seiscentos metros, proximamente. [82] Em portuguez chama-se vulgarmente ferro fundido (traducção do termo francez «fonte de fer») não ao ferro puro em fusão ou depois de ter sido fundido, mas a um carbonato silicioso de ferro que se obtem submettendo o minerio de ferro a differentes operações. (_Nota do traductor_.) [83] Cidade da Lua. [84] Quatrocentos e trinta e tres contos e seiscentos mil réis. [85] Mystification. Mystificação. [86] Paixão dominante. [87] A inclinação do eixo de Jupiter, sobre a sua orbita, é apenas de 3^o 6'. [88] Ponto onde se reunem os raios luminosos depois de refractos. [89] Custou oitenta mil rublos, isto é, cincoenta e sete contos e seiscentos mil réis. [90] De muitas outras lunetas reza a chronica que tinham bem maior comprimento, entre outras uma construida por iniciativa de Domingos Cassini, no observatorio de Paris, que tinha trezentos pés de foco; convem todavia saber que taes lunetas não tinham tubo. O objectivo estava suspenso nos ares por meio de mastros, e o observador collocava-se com a possivel exactidão no foco do objectivo, com o ocular na mão. É bem patente quão pouco commodo haveria de ser o emprego de taes instrumentos, e a difficuldade que haveria em ajustar os centros de duas lentes collocadas em similhantes condições. [91] Esta especie de reflectores chamam-se «front view telescope», isto é «telescopios de visão directa». [92] O mais alto cume do Hymalaya. [93] Nebulosa que tem a fórma de um carangueijo. [94] Duzentos litros approximadamente. [95] Comida composta de diversos peixes. [96] J. M. Belfast. Lista de erros corrigidos Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: +----------+---------------------+----------------------+ | | Original | Correcção | +----------+---------------------+----------------------+ |#pág. 106| Ábriram-se | Abriram-se | |#pág. 107| trinte | trinta | |#pág. 111| surpeza | surpreza | |#pág. 202| todos as dimensões | todas as dimensões | |#pág. 223| annos annos | annos | |#pág. 236| falubosas | fabulosas | | | | | |#nota 9| eleito | eleitos | +----------+---------------------+----------------------+ Os nomes próprios foram mantidos tal e qual como surgiram impressos. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK DA TERRA À LUA, VIAGEM DIRECTA EM 97 HORAS E 20 MINUTOS *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg™ name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg™ License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg™ work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country other than the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. 1.E.2. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase “Project Gutenberg” associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg™ trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg™. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg™ License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg™ electronic works provided that: • You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg™ works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg™ trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, “Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation.” • You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg™ License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg™ works. • You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. • You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg™ works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg™ electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of the Project Gutenberg™ trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread works not protected by U.S. copyright law in creating the Project Gutenberg™ collection. Despite these efforts, Project Gutenberg™ electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain “Defects,” such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the “Right of Replacement or Refund” described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg™ trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg™ electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™ Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate. Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our website which has the main PG search facility: www.gutenberg.org. This website includes information about Project Gutenberg™, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.